quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

o fungágá da livralhada

As melhores leituras em 2011 foram:

Emigrantes. Shaun Tan (Kalandraka, 2011)
Porque nesta obra visual vislumbro todas as imagens e sombras do partir.

Suite 605. João Pedro Martins (Smartbook, 2011)
É uma investigação por conta própria a chapar-nos nos olhos os esquemas de como nos roubam alegremente. Aqui o link.

É de noite que faço as perguntas. David Soares (Saída de Emergência, 2011)
Um texto desarmante para quem estava à espera de uma bêdêzinha feita para agradar ao patrocinador do centenário de um feriado essencial (que para mim assinala a não aceitação de uma seita privilegiada), agora extinto (pelo menos o feriado; o patrocinador não sei). O texto termina assim.

Storytelling. Gabriel García de Oro (GestãoPlus, 2011)
Várias histórias já me eram conhecidas e chegam-me em forward no email de tempos a tempos. O livro está pensado para as relações de trabalho, mas serve melhor como desbloqueador de conversa. E para os mais penitentes também inclui uma oração.

Guia de conceitos básicos. Nuno Júdice (Dom Quixote, 2010)
Enfiei aqui três poemas deste livro com que cheguei a 2011 e a que gosto de regressar às mijinhas. Tal e qual como quem gosta dos pensamentos selecionados do Paulo Coelho.

A chama dupla - amor e erotismo. Octavio Paz (Assírio e Alvim, 1995)
Com este livro em casa há tantos anos, é estúpido que só agora eu o tenha abraçado.

 O retorno. Dulce Maria Cardoso (Tinta da china, 2011)
Li-o numa noite porque fiquei agarrado à procura do pai do protagonista desta história. Gosto dele não pela sua faceta de romance histórico - que particularmente o contexto pouco me interessa - mas pela dimensão poética do texto narrado na simplicidade de um rapaz e pela torrente de imagens que gera, absolutamente cinematográfico. Um poema sóbrio e sem artifícios, sem os malabarismos de um António Lobo Antunes.

O leitor escreve para que seja possível. Manuel Gusmão e Eduardo Coelho (Assírio & Alvim, 2001).
Ensina a ler. Faz parte do meu guia de orientação.

Coisas que nunca aconteceriam em Tóquio. Alberto Torres Blandina (Quetzal, 2011)
Não interessa que esta ficção de aeroporto conjugue episódios mais prováveis ou improváveis. Este livro não vale pela verosimilhança mas pelo prazer da leitura, pela degustação, que é afinal de contas a melhor forma de provar alguma coisa. Um gozo.

A dança das feridas. Henrique Manuel Bento Fialho (edição do autor, 2011)
Pois. É o melhor livro publicado este ano e esta dança alinhou o espanto e o prazer do texto numa cadência que talvez o poeta queira sempre irrepetível. Li-o à luz de um manual do mesmo autor - O meu cinzeiro azul - para respirar entre as modinhas.

O meu cinzeiro azul. Henrique Manuel Bento Fialho (Canto Escuro, 2007)
Este é o livro mais sublinhado do ano: quero sintetizá-lo (porque está organizado pela data dos textos), recolhendo-o por temas: o que o autor diz que a poesia é; o que o autor diz que a poesia não é; a necessidade e o papel da poesia; o princípio da poesia; o futuro da poesia; o obstáculo da poesia; o sentido da vida na poesia; o sentido da poesia na vida; o lugar do poema; a função do poema; a relatividade na poesia; a liberdade na poesia; a fúria na poesia; a crítica; o poeta; o leitor; o amor. Portanto, é livro para 2012.

Antologia poética. António Ramos Rosa (Dom Quixote, 2001)
É o meu poeta e este ano estimei-o com a leitura integral deste bloco.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

E estás algures, em ilhas, selada pelo teu próprio brilho,

E estás algures, em ilhas, selada pelo teu próprio brilho,
enquanto a terra me queima os dedos e os dedos
entram no coração como uma queimadura e o coração
propagado
é o incêndio na cabeça - às vezes
a cabeça não sabe que os pulmões arrastam
as labaredas do mundo como um grande buraco
de vozes: um rumor
de crepitações: uma força: uma rapidez
entre as formas - espelhos luzindo
atrás dos rostos: e tu levantas um braço:
trazes do fundo de tudo a raiz ainda viva de cada coisa:
uma constelação magnética entre os pés afastados
- eu vejo a tua morte no meu próprio movimento:
na chama correndo pela paisagem
fora, a paisagem
que ergues, que depois abandonas ao seu próprio espaço
de paisagem no tempo,
externa: atravessada por noites,
por luzes, transformações, ideias de quem vê,
pelos seus desenvolvimentos ocultos - vejo
que ressuscito no teu modo, essa espécie de estilo
ou energia,
quando casa e paisagem circulam como ilhas
numa torrente à volta -
e então o que tocas é esse teu mesmo coração cruzado
por imagens luxuosas: o filme aceso:
membranas do corpo rutilando à passagem dos astros de mármore -
e o teu rosto arranca-se à sombria gravidade
do fundo
da beleza, dos poderes terrestres e o peso
de tanta profundidade: e um instante explode
essa estrela embrenhada na minha cabeça, como
o coração se aprofunda, os dedos
puxam
as linhas de lume com que se cose a terra,
a fenda do seu sangue abismado - às vezes
o espelho é o meu próprio corpo,
a sua ferida: mas entre ilhas, sob
o que circula: espuma do ar, os cometas,
no sono sumptuoso
de animais
quase fixos, os rostos abertos aos raios dos nossos rostos,
aos nossos dedos que lhes chegam ao meio do coração -
porque tudo anda dentro de mim, e o mundo
esgota-se
no teu movimento entre laços
de sangue, cabelos luzindo, as pedras
inclinadas para os teus lugares respiradores: a árvore
crescendo a cada paragem, com toda a tua inspiração
na minha morte, aqui, uma árvore
combustível
onde a fruta faísca: paraíso de espaços múltiplos
e velozes,
entranhado em mim como se eu fosse a árvore
e tu fosses um espelho que a árvore despedaçasse pela sua força
e no espelho eu, como uma imagem, fosse despedaçado,
brilhando.


***

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como as estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.


Ou o poema contínuo (súmula)
Herberto Helder
Assírio e Alvim, 2001

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

a opinião das estatísticas

Na opinião das estatísticas, esta é a informação mais procurada aqui até agora, e parece que assim continuará. A seguir vem esta transcrição do prefácio de um livro. Os servidores dinamarqueses dirigiram 25 caminhadas até esta rua. A música mais encontrada continua a ser esta, e este o poema (certamente achado ao engano). Engano por engano, peço a compreensão dos profissionais do ofício para a desilusão que têm encontrado neste link.

domingo, 6 de novembro de 2011

É de noite que faço as perguntas. David Soares, Saída de Emergência, 2011

"Histórias não são memórias. Não posso dá-las porque não as tenho, meu filho. Desapareceram. Para onde foram os meus sonhos? Onde estão as pessoas que amei? Não ficamos com nada. Quem escolhe as memórias que perduram e as que morrem? Somos nós. Só nós. Sim. É de noite que faço as perguntas. Apenas me esforço por esquecer as respostas... antes que amanheça."

Termina assim esta bela deambulação ilustrada pelos ideais.
Aqui um espaço do autor.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

referências reverências

Não me apetece escrever. E preocupa-me que no escrever as referências se tornem em mimadas reverências.

Não sei se alguém foi ao café avisar o René que esta semana morreu o David Croft, o criador do ´Allo ´Allo! Fica a referência e - assim, sim - a reverência. E aqui a bela da musiquinha.

sábado, 13 de agosto de 2011

Jogos de guerra

Ainda há índios e pistoleiros no quintal
da criança cerrada que destruía canteiros
cavando trincheiras, plantava flechas,
semeava granadas com seixos e pinhas e latas e
lenha na mola dos braços.

Vergou couves capturando inimigos!
Sinais de fumo na fogueira do lixo!
Valeu tudo no quintal - perdeu dos dois lados:
não faças a guerra sozinho porque alguém tem de morrer.

Mas saltou o ribeiro heroicamente, quantas vezes
atirou aos eucaliptos e dispersou entre as canas -
havia que apanhá-lo ou fugir de si.

Explorava a fantasia e fugia, assustado
aprendeu que o medo paralisa quem se faz perseguir
e o jogo era esse: acreditar para ter medo,
no tempo em que as guerras ainda paravam para almoço,
que o comer está na mesa e não é de esperas.

Ainda há índios e pistoleiros no quintal
e hoje sabe tanto sobre índios e pistoleiros como dantes:
que é ele só a vingar-
-se numa guerra automática
que agora não pára
nem para comer.

Quando disseram que a infância era o cerco de toda a existência,
o cerco chamou de solidão à infância,
a existência chamou de laboratório ao cerco
e a infância chamou de evidência à existência.

Quando disseram que a solidão era o laboratório de toda a evidência,
a evidência chamou de isolamento dos corpos à solidão,
a solidão chamou de treva ao laboratório
e o laboratório chamou de pretexto à evidência.

Quando disseram que o isolamento dos corpos é a treva de todo o pretexto,
o isolamento dos corpos chamou de desculpa ao pretexto,
o pretexto chamou de combustível à treva
e a treva chamou de silêncio ao isolamento dos corpos.

Quando disseram que o silêncio é o combustível de toda a desculpa,
o silêncio - claro - não chamou nada a ninguém,
o combustível consumiu-se
e a desculpa cumpriu-se igualmente no fim de todos os insultos:
- Desculpem - é que ainda há índios e pistoleiros no quintal,
o medo para picar.

A casa

sei dum pinheiro que pinta
de sombra a casa de cal
não lhe fica cara a tinta
rouba a do sol que há no vale

sei que num vale um pinheiro
chamou-se noite de dia
curvou o seu corpo inteiro
sobre a cal da moradia

sei que de cal uma casa
toldou-se-lhe o céu sem dó
uma sombra cai e arrasa-a
de tão negra, fica só

sei dum vale muito gelado
onde nem a água corre
e fria, no rio parado
veste-se de terra e morre

sei duma casa sozinha
num vale onde vai ninguém
foi-se a cal que a casa tinha
sumiu-se a casa também

Stig Dagerman e a solidão

"Estamos sozinhos, lançados no espaço como uma bóia no mar, expostos como um alvo às setas, já não podemos escapar à nossa sorte e tudo pode acontecer. É de esperar que águias ou falcões desçam das estrelas e se precipitem em fúria sobre nós uma vez que somos o único objecto macio que existe no mundo, o único objecto no qual poderá cravar-se um bico ou penetrar uma garra, é de esperar também que meteoritos ou outra coisa qualquer nos dilacerem o peito nu e virado para o infinito, mas a única coisa que acontece é o espaço começar a cantar, a cantar de solidão. «A única coisa»... não, não se trata de um pormenor insignificante, mas de um facto terrível.
Um pouco de música, pensamos, podíamos realmente suportar um pouco de música: mas não, não é verdade: não podemos suportar a música, somos apenas forçados a suportá-la. «O espaço», esse conceito ridículo com o qual as pessoas se atrevem a brincar quando percorrem pântanos e florestas, parques e instalações frigoríficas, ou quando estão sentadas numa cadeira de balouço e vêem o céu por cima das sebes de lilases, o espaço, esse pequeno lago onde idílicos batéis de nuvens deslizam sob o impulso do vento, o espaço tal como nos surge, quando nunca saímos ainda do buraquinho onde nascemos, onde crescemos, onde maltratámos e fomos maltratados e onde dentro de pouco tempo morreremos, esse espaço não passa de mentira para quem viveu a infinita solidão do espaço, acorrentado a um campo metálico cintilante, sozinho na imensidão mais árida de todos os desertos, e debruçamo-nos na esperança de descobrirmos água, de vermos qualquer coisa de sólido em vez deste vazio pavoroso neste espaço cuja extensão atroz nunca ousámos imaginar enquanto vivíamos no nosso buraco, porque é como um poço sem fundo; debruçamo-nos cada vez mais, a tal ponto que acabamos por cair, e uma vez caídos, continuamos a cair toda a vida sem termos outra coisa para viver além dessa queda sem fim, até ao dia em que morremos em plena queda sem jamais chegarmos a atingir fundo algum, porque somos aniquilados durante a própria queda e devorados pelo vazio depois de termos desesperadamente tentado dar-lhe sentido esforçando-nos por chegar ao fundo.
E todavia, não captamos a desmesura deste espaço nem ao cair, nem ao ficarmos amarrados a ele, nem quando o sentimos pesar no peito, não, é só quando o espaço começa a cantar que descobrimos tudo o que nunca tínhamos conseguido supor, e de repente tudo nos surge com uma certeza esmagadora, e esta certeza far-nos-ia rebentar como um balão se desfecho semelhante fosse possível. Mas quando se está assim miseravelmente colado ao íman, nada a fazer: devemos limitar-nos a ouvir, nem sequer podemos mexer as mãos para tapar os ouvidos e, aliás, isso nada mudaria, porque de cada vez que o espaço canta de solidão, transformamo-nos num grande ouvido à escuta, e para o conseguirmos tapar e deixar de ouvir, seria preciso pelo menos um meteorito, um corpo celeste - quem sabe, talvez uma estrela bastasse? E o canto... oh, é um canto tão belo, mas tão atroz, tão mais belo e tão mais terrível do que tudo o resto que se ao menos pudéssemos morrer... mas estamos condenados a continuar assim eternamente, vivos, enquanto o canto se engolfa dentro de nós como a água na turbina, e julgamos que será sempre assim, que o espaço para sempre cantará de solidão e que nós próprios, ouvidos indefesos numa superfície implacavelmente nua, ficaremos a escutar um canto implacavelmente belo, e que a ausência de eco, de alterações atmosféricas e de dores de ouvidos tornam ainda mais implacável.
Mas de uma maneira ou de outra, devemos ter acabado por nos ver livres desta solidão, ou talvez simplesmente adormecido, para acordarmos no nosso buraco e vermos o habitual raiozinho da eternidade a sorrir-nos entre as persianas e o rebordo da cama.
Já não estamos sós, pensamos então, a ingrata aventura terminou, o triste episódio passou - e a vida continua, de dia para dia um pouco menos solitária; mas a verdade é que as coisas não acabaram ainda, estão apenas a começar. Estamos no quarto ou saímos do quarto, tanto faz, encontramos gente ou não vemos ninguém, é indiferente, falamos com a parede ou calamo-nos diante da parede, comemos e bebemos ou só bebemos, escrevemos uma carta ou limitamo-nos a comprar um selo, começamos uma viagem ou ficamo-nos pela compra de um bilhete, saímos e dançamos ou vamos só até à sala de dança sem dançar, fazemos uma coisa ou não a fazemos, descuramos a maior parte dos assuntos ou nada omitimos: nada disso muda seja o que for, é tudo completamente indiferente, porque continuaremos sempre a sentir esse muro de vidro que nos separa dos outros, esse vidro duro que trazemos sempre connosco, através do qual vemos e somos vistos desde que o trouxemos connosco da nossa visita ao espaço. Estamos isolados como doentes e é justo que assim seja, uma vez que estamos mais doentes do que a maioria; também podemos dizer, por conseguinte: estou isolado como um condenado à morte, e é justo que assim seja, mereço mais a morte do que todos os outros.
E eis-nos de novo sós, mas a solidão é muito pior do que da vez anterior, o espaço não canta de solidão, o espaço não canta seja o que for, o espaço chove, neva, venta - mas isso nada nos diz. Estamos sozinhos de uma maneira acanhada, inestética e pois que seja como for não há salvação (admitindo que escapar à solidão seja salvarmo-nos), não é de admirar que ansiemos pelo grande espaço com a sua música diabólica mas sublime, com o seu isolamento implacável mas higiénico, com a sua ausência total de vida, sem dúvida, mas ao mesmo tempo com uma ausência igualmente absoluta de toda a obrigação de buscar contactos, de toda a necessidade de sorrir quando queremos chorar, de acariciar quando queremos arranhar, de procurar amigos quando acabamos justamente de descobrir que o mundo está cheio de inimigos.
Aspiramos aos instantes de completo abandono, aos instantes de solidão brutal e sublime com toda a intensidade da sua esperança e todo o ardor dos seus olhos, partilhamos um segredo perigoso, fomos iniciados no modo de emprego de um veneno temível chamado solidão e, como morfinómanos, dividimos doravante a vida em dois períodos: a embriaguez e a recuperação."

In "Os fogos da noite". A ilha dos condenados, Stig Dagerman, Antígona, 1990.



Stig Dagerman e o desgosto

"Ao fim de algum tempo, o desgosto fecha-se como a flor antes da noite, não se couraça, mas reveste-se de um envólucro novo como uma pétala sob a qual podemos senti-lo pulsar, continua a fazer parte de nós, permanece fresco e vivo e nele podem molhar-se os lábios como na limpidez de uma fonte; só que passa agora a ser possível, até certo ponto pelo menos, escolhermos o instante em que queremos estar com ele. É perigoso, contudo, deixá-lo de lado demasiado tempo, um desgosto recente tem de ser cuidadosamente tratado, é preciso ir buscá-lo de vez em quando como um objecto precioso e poli-lo como um espelho, caso contrário não tardará a cobrir-se de uma membrana espessa, operando-se assim o couraçamento, o que de resto, mais cedo ou mais tarde, é inevitável.
E quando o couraçamento se instaura, eis-nos de certo modo outra vez no ponto de partida, longe do desgosto no espaço e no tempo, mas tornando-se todas as coisas ainda mais desesperantes porque sabemos nessa altura que nada mais temos a esperar. Em vez do desespero surdo e pesado do início, entramos num terrivel período de apatia, de inércia, de expectativa, e vivemos então segundo a perspectiva de que nada mais acontecerá. Tudo se torna indiferente, tudo em redor se crispa e endurece, queremos colher, mas há só morte para colher, queremos ver, mas o olhar esbarra na dureza do objecto, queremos amar, mas descobrimos que não somos capazes porque nós próprios estamos cobertos por uma membrana dura, todos os sentimentos gelaram dentro de nós, estamos gastos e ressequidos e nada, nem sequer a nossa horrível solidão, consegue ao menos fazer-nos tremer.
Claro, também isto não dura eternamente, desde há muito já pequenas correntes laboriosas agem sob a couraça e por baixo do gelo: por fim tudo explode e, pela última vez, reencontramos o desgosto. Mas desta vez não ficamos tolhidos, o corpo não participa já com o mesmo grau de brutalidade, dir-se-ia que os músculos, os vasos sanguíneos e os membros, outrora tensos de desgosto, já não têm forças para intervir. Tudo se passa agora no plano da memória, voltamos incansavelmente ao terreno devastado, remexemos as ruínas calcinadas onde os destroços deformados de uma vida jazem sobrepostos como serpentes por baixo da fuligem e das traves."

De "O desgosto do sol poente". A ilha dos condenados, Stig Dagerman, Antígona, 1990.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Londres, à luz de Bauman

Uma vez que o Estado vai cedendo a sua função de integração a forças do mercado intrinsecamente desreguladoras e privatizadoras, o terreno abandonado passa a poder ser preenchido por “comunidades”, não tanto “imaginadas” como postuladas, que se apoderam da tarefa posta de parte de fornecer garantias colectivas às identidades privatizadas. O pensamento pós-moderno nada em sonhos de verdades e certezas locais que esperam fazer o trabalho civilizador que as grandes verdades e certezas dos Estados-nação, com as suas pretensões ao papel de porta-vozes da universalidade, não conseguiram levar a cabo: assegurar uma tal unidade de pensamento, sentimento, vontade e acção que qualquer tipo de violência gratuita passasse a ser inconcebível. Mas as comunidades postuladas neotribais esvaziarão decerto essa esperança. O neotribalismo é uma má perspectiva para todos os que desejam ver o discurso e o debate substituir as facas e as bombas como armas de afirmação de si.



As novas classes perigosas, por outro lado, são as que se consideram como não aptas para a integração, por isso sendo declaradas inassimiláveis, já que não parece concebível qualquer função que pudessem vir a desempenhar depois de reabilitadas. Não são apenas excedentárias, mas também supérfluas. Deste modo, vêem-se excluídas permanentemente, portanto: e trata-se de um dos poucos casos de permanência que a modernidade líquida não só permite, mas também vivamente fomenta. Este actual tipo de exclusão não é visto como resultado de uma má sorte passageira, mas antes como um destino irrevogável. Mais ainda, a exclusão tende, hoje em dia, a ser um beco sem saída. Quando se queimam os navios, é muito difícil voltar a construí-los. A inexorabilidade da ordem de despejo e as perspectivas pouco animadoras de qualquer tentativa de recorrer da sentença são o que converte os actuais excluídos em classes perigosas.

domingo, 31 de julho de 2011

Octavio Paz e o todo

"Ao nascer, fomos arrancados da totalidade; no amor, todos nos sentimos regressar à totalidade original. Por isto, as imagens poéticas transformam a pessoa amada em natureza - montanha, água, nuvem, estrela, selva, mar, onda - e, por sua vez, a natureza fala como se fosse mulher. Reconciliação com a totalidade que é o mundo. Também com os três tempos. O amor não é a eternidade; tão-pouco é o tempo dos calendários e dos relógios, o tempo sucessivo. O tempo do amor não é grande nem pequeno: é a percepção instantânea de todos os tempos num único, de todas as vidas num instante. Não nos liberta da morte, mas faz-nos vê-la cara a cara. Esse instante é o reverso e o complemento do «sentimento oceânico». Não é o regresso às águas da origem mas a conquista de um estado que nos reconcilia com o exílio do paraíso. Somos o teatro do abraço dos opostos e da sua dissolução, resumidos numa única nota que não é de afirmação nem de negação, mas de aceitação. Que vê o casal no momento de um bater de pálpebras? A identidade do aparecimento e do desaparecimento, a verdade do corpo e do não-corpo, a visão da presença que se dissolve num esplendor: vivacidade pura, pulsação do tempo."

In A chama dupla. Octavio Paz, Assírio & Alvim, 1995.

Octavio Paz e a desdita

"Pouco podemos contra os infortúnios que o tempo reserva a cada homem e a cada mulher. A vida é um risco permanente, viver é expor-se. A abstenção do ermitão acaba em delírio solitário, a fuga dos amantes em morte cruel. Outras paixões podem seduzir-nos e arrebatar-nos. Umas superiores, como o amor a Deus, ao saber ou a uma causa; outras baixas, como ao dinheiro ou ao poder. Em nenhum desses casos desaparece o risco inerente à vida: o místico pode descobrir que corria atrás de uma quimera, o saber não defende o sábio da decepção que é todo o saber, o poder não salva o político da traição do amigo. A glória é uma cifra frequentemente equivocada e o esquecimento é mais forte que todas as reputações. As desditas do amor são as desditas da vida."

In A chama dupla - amor e erotismo. Octavio Paz, Assírio & Alvim, 1995.

Octavio Paz e o egoísmo

"O grande perigo que espreita os amantes, a armadilha mortal em que muitos caem, é o egoísmo. O castigo não se faz esperar: os amantes não vêem nada nem ninguém que não seja eles mesmos até que se petrificam... ou se detestam. O egoísmo é um poço. Para sair para o ar livre, há que olhar para além de nós mesmos: lá está o mundo e ele espera-nos."

in A chama dupla - amor e erotismo. Octavio Paz, Assírio & Alvim, 1995.

Octavio Paz e o amor

"O amor não busca nada mais além de si mesmo, nenhum bem, nenhum prémio; tão-pouco persegue uma finalidade que o transcenda. É indiferente a toda a transcendência: principia e acaba nele mesmo. É uma atracção por uma alma e um corpo; não uma ideia: uma pessoa. Essa pessoa é única e está dotada de liberdade; para a possuir, o amante tem que ganhar a sua vontade. Posse e entrega são actos recíprocos."

in A chama dupla - amor e erotismo. Octavio Paz, Assírio & Alvim, 1995.

Octavio Paz e o teatro do abraço

"O encontro erótico começa com a visão do corpo desejado.Vestido ou nu, o corpo é uma presença: uma forma que, por um instante, é todas as formas do mundo. Mal abraçamos essa forma, deixamos de nos aperceber dela como presença e agarramo-la como uma matéria concreta, palpável, que cabe nos nossos braços e que, todavia, é ilimitada. Ao abraçar a presença, deixamos de vê-la e ela própria deixa de ser presença. Dispersão do corpo desejado: vemos somente uns olhos que nos olham, uma garganta iluminada pela luz de uma lâmpada e depressa regressada à noite, o brilho de uma coxa, a sombra que desce do umbigo ao sexo. Cada um destes fragmentos vive por si só mas alude à totalidade do corpo. Esse corpo que, de súbito, se tornou infinito. O corpo do meu par deixa de ser uma forma e converte-se numa substância informe e imensa na qual, ao mesmo tempo, me perco e me recupero. Perdemo-nos como pessoas e recuperamo-nos como sensações. À medida que a sensação se torna mais intensa, o corpo que abraçamos faz-se mais e mais imenso. Sensação de infinidade: perdemos o corpo nesse corpo. O abraço carnal é o apogeu do corpo e a perda do corpo. Também é a experiência da perda da identidade: dispersão das formas em mil sensações e visões, queda numa substância oceânica, evaporação da essência. Não há forma nem presença: há a onda que nos embala, a cavalgada pelas planícies da noite. Experiência singular: inicia-se pela abolição do corpo do nosso par, transformado numa substância infinita que palpita, expande-se, contrai-se e encerra-nos nas águas primordiais; um instante depois, a substância desvanece-se, o corpo volta a ser corpo e reaparece a presença. Somente podemos aperceber-nos da mulher amada como forma que esconde uma alteridade irredutível ou como substância que se anula e nos anula."

in A chama dupla - amor e erotismo. Octavio Paz (Assírio & Alvim, 1995).

Octavio Paz e a poesia

"Passaram os anos. Continuei a escrever poemas que, com frequência, eram poemas de amor. Neles apareciam, como frases musicais recorrentes - também como obsessões -, imagens que eram a cristalização das minhas reflexões."

"Para mim a poesia e o pensamento são um sistema de vasos comunicantes. A fonte de ambos é a minha vida: escrevo acerca do que vivi e vivo. Viver é também pensar e, às vezes, atravessar essa fronteira na qual pensar e sentir se fundem: a poesia."

"Sem dúvida, a poesia é feita de palavras enlaçadas que lançam reflexos, cintilações e cambiantes: o que nos mostra são realidades ou espelhismos? Rimbaud disse: Et j´ai vu quelquefois ce que l´homme a cru voir. Fusão de ver e crer. Na conjunção destas duas palavras está o segredo da poesia e dos seus testemunhos: aquilo que o poema nos mostra não o vemos com os nossos olhos de carne mas com os do espírito. A poesia faz-nos tocar o impalpável e escutar a maré do silêncio cobrindo uma paisagem devastada pela insónia. O testemunho poético revela-nos outro mundo dentro deste mundo, o mundo outro que é este mundo."

in A Chama Dupla - amor e erotismo. Octavio Paz (Assírio & Alvim, 1995).

terça-feira, 21 de junho de 2011

amor novo

Acabado o amor, vislumbra-se um amor novo em versão upgrade ou rebuscada de épocas antigas: o culto do outro, sem exigência ou indução de garantias de retorno, a interdependência autêntica em função do outro, altruísta por afecto, procurado no seu bem-estar o próprio bem-estar, e isto acontecer de forma recíproca e intrínseca permanente, sem batota, gerindo os condicionalismos da vivência em parceria e do jogo social.

Ou não.

Acendemos o fogo como metáfora (se não é o amor ele mesmo uma metáfora de ideia bloqueada na linguagem) e logo temos o amor em chamas, pleno da ambiguidade contemporânea: de um lado as chamas que ardem o amor assim ameaçado de extinção, que do outro não são mais que as mesmas chamas que tornam o amor ardente, digo vivente, por ser o amor em si mesmo o tal fogo que arde.

Ou então é isto.

http://www.youtube.com/watch?v=sVGytjCzubo

sábado, 18 de junho de 2011

Momento luminoso

"É que, em realidade, as horas não podem mais ter acção sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou - apenas - os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.
Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não vivem, têm a paz - pode ser. Entretanto, não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo, todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido."

Mário de Sá-Carneiro, "A Confissão de Lúcio". (11x17, 2010).

terça-feira, 14 de junho de 2011

Perguntas mortiças a um escritor quando vivo

"Roberto Bolaño: últimas entrevistas" (tradução portuguesa da Quetzal em 2011) reune quatro sessões de perguntas / respostas, nenhuma delas conduzida por Carlos Vaz Marques e todas tão desnecessárias quanto o riso delicodoce típico das investidas de Carlos Vaz Marques. Desta vez e se possível apenas com outro jeito, Carlos Vaz Marques teria dado jeito ao interlocutor.

Bem, do mal o menos:

"[...] e depois não há outra opção que não seja escrever. Para mim, a palavra «escrita» é exactamente o oposto da palavra «espera». Em vez de esperar, há escrever. Bem, provavelmente não tenho razão - é possível que escrever seja outra forma de esperar, ou de adiar coisas. Gostava de pensar doutra maneira. Mas, como disse, provavelmente não tenho razão."

"A literatura está cheia de autobiografias, algumas muito boas, mas os auto-retratos tendem a ser maus, incluindo os auto-retratos em poesia, que à primeira vista pareceria ser um género mais adequado para nos auto-retratarmos do que a prosa."

"Nicanor Parra diz que os melhores romances são escritos com métrica. E Harold Bloom diz que a melhor poesia do século XX é escrita em prosa. Concordo com ambos."

"É como aquela anedota acerca da mãe judia: num acesso de loucura, o filho corta a cabeça da mãe, foge, depois tropeça e, quando tropeça - com a cabeça da mãe ainda nos braços - a cabeça diz: «Filho, estás bem?» O amor de um pai pelo seu filho é semelhante."

"Para mim, o grande poeta do Chile é Nicanor Parra e depois de Nicanor Parra há vários outros. Neruda é um deles, sem dúvida. Neruda é o que eu pretendia ser aos vinte anos: viver como um poeta sem escrever. Neruda escreveu três livros muito bons; o resto - a grande maioria - é muito mau, alguns deles verdadeiramente contaminados."

"A crítica literária é uma disciplina que representa algo mais para mim do que literatura. A literatura é prosa, romance e conto, dramaturgia, poesia, ensaios literários e crítica literária. Acima de tudo, acho que é necessário que exista crítica literária - sem acidentes - nos nossos países, e não dez linhas acerca de um autor que provavelmente o crítico não voltará a ler. Quer isto dizer que é necessário que haja uma crítica que, de caminho, corrija a paisagem literária."

"Comovem-me os jovens de aço que lêem Cortázar e Parra, tal como eu os li e como tento continuar a lê-los. Comovem-me os jovens que dormem com um livro debaixo da cabeça. Um livro é a melhor almofada que existe."

"Mónica Maristain - O que é que o aborrece?
Roberto Bolaño - O discurso vazio da esquerda. O discurso vazio da direita, já o dou por adquirido."

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Nos eixos

Habituámo-nos a cingir ao tempo os movimentos, as coisas e a expressão das ideias, a celebrar em função de limites (datas, balizas, metas, marcos...) num circuito fechado de escolhas e de identificações. O que é a notícia, senão uma oferenda no cortejo do dia? Enchemos os dias de heróis e desgraças, de tops e recordes, de regra e desvio. Abrimos os jornais e vemos o melhor e o pior, os altos e baixos, a foto do dia, a cronologia, o editorial, o tema em destaque, os relatórios da Lusa e das polícias, o obituário, as ocasiões, as colunas, a espinha e uma epiderme inteira de estados do tempo, de estados de espírito e demais passatempos, como se fosse preciso. E depois há as últimas.
O tempo – e esta é a versão inconsistente que me apetece aqui chamar - é a instalação forçada das máquinas, dos exercícios e das avarias que não tinham outro vazio para ficar, na tentativa de sobreviverem ao esquecimento sempre à espreita de um resgate, de uma ligação aos próximos fenómenos. Mas a instalação do tempo assenta sobre eixos, o espanto transformado em consciência: o choque de aprender e o deleite sofrido das referências; a percepção do outro em si.
Quando alguém me diz que foi o seu tempo de alguma história, acredito que transporte essa bagagem consigo. Não que esse tempo transite e ainda lhe sirva nem que os eixos sejam rodas promissoras, mas que já é ele que assenta nesses eixos em vez do tempo e que se rodeia de movimentos, de coisas e de expressões que o (co)movem para o que ainda vier. O resto é um número desnecessário, sabendo que o ano em que Ricardo Reis morreu foi o ano da morte de Ricardo Reis.
Também eu sou o meu tempo. Também eu retrato a época pelo surgimento de um espanto, de uma tomada de consciência, de uma revelação propulsora, de um novo eixo que se inscreve e que perdura com mais ténue ou acentuado fatalismo, de um filtro novo para as borras do mundo. A aventura. A dança das feridas.
Entre a noite e o riso, lembro o tempo endiabrado em que pai e mãe já avisavam filho para andar nos eixos.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Entendemo-nos por música


A personagem é esta: um taxista turco melómano, sempre a aumentar o volume do leitor ao longo da viagem (foi até ao 46...). Lá atrás, os passageiros entram no ritmo em noite de farra, batem palminhas e soltam uns acordes marados numa língua acabada de inventar. Em cima, a histórica foto no momento da aquisição do disco ao taxista (Maio 2011). Em baixo, a exótica abertura do cd, que já rola nas estradas portuguesas. Tinha de ser!


As latrinas do Éfeso

 
Fotografias de um importante ponto de encontro e de conversação da antiguidade: as latrinas do Éfeso. Maio 2011.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Vou para onde cheira a bananas


Gosto de reler a aventura do pequeno urso e do pequeno tigre que um dia descobrem um caixote a boiar, ainda com cheiro a bananas e com a inscrição PANAMÁ. “-O caixote vem do Panamá e o Panamá cheira a bananas. Oh, o Panamá é a terra dos meus sonhos – disse o ursinho.” Por isso decidem partir logo no dia seguinte à procura do Panamá. “-Sempre que uma pessoa não sabe o caminho – disse o ursinho –, precisa primeiro de uma placa a indicar o caminho. Por isso fez uma placa a indicar o caminho.” Estacaram a placa e partiram nessa mesma direcção. Na viagem desorientada, repleta de encontros com novos amigos a quem iam pedindo indicações, conseguiram descobrir o Panamá, devidamente identificado: tinham ido parar à casa de partida – nem mais!
A história releva primeiro a viagem, o ir, o encontro, e a seguir o reencontro, um regresso transformado, consciente de si e do mundo.
Gosto de reler este livro ilustrado e de pensar que é por um reencontro que ponho todos os dias os pés de fora da cama e que vou para onde cheira a bananas.
Agora vou dormir porque a semana ainda agora começou e amanhã tenho muito Panamá para fazer...

domingo, 29 de maio de 2011

Éfeso



"Paulo não conheceu Cristo, mas considera-se tão apóstolo como os doze. Invoca uma autoridade que lhe advém da revelação na estrada de Damasco e da missão a que foi então destinado. Decide por isso levar a Igreja muito além da Palestina. É um viajante incansável e tenaz: Antioquia, Galácia, Filipos, Tessalónica, Colossos, Corinto, Éfeso, provavelmente a Península Ibérica. Figura carismática, causa grande impressão nessas cidades. Só em Atenas fracassa, porque os sofisticados gregos acham ridículo que se diga que alguém «ressuscitou»."
De "Paulo", in "As Vidas dos Outros" (Pedro Mexia, Tinta-da-China, 2010).

Fotografias: Éfeso, no teatro onde, entre outras bizarrias, andou São Paulo a apregoar um deus invisível. 14.05.2011
Desfile - parte 1. Antalya, Maio 2011.


Desfile, parte 2. Antalya, Maio 2011
 Feirantes. Antalya, 18.05.2011


Estacionamento. Antalya, 18.05.2011

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Café turco

“De todas as bebidas pagãs que me passaram pelo estreito, o café turco foi a pior. Vem numa chávena pequena, polvilhada de grãos, e o café é preto, espesso, de cheiro desagradável e péssimo sabor. O fundo da chávena apresenta um sedimento pastoso de meia polegada. Quando nos desce pela garganta, uma parte desta lama fica pelo caminho, produzindo uma irritação que nos faz ladrar e tossir durante uma hora.”

*
“Um esqueleto cor de cobre, com um trapo à cintura, trouxe-me um frasco de vidro com água, com um cachimbo normal por cima e uma cana flexível com cerca de uma jarda de comprimento e um bocal de latão na ponta.
Era o famoso «narguilé» oriental: aquilo que o Grande Turco fuma nas gravuras. Isto já começava a parecer um luxo. Dei uma baforada e bastou; o fumo desceu-me com uma forte pressão até ao estômago, os pulmões e às partes mais recônditas do meu organismo. Explodi numa tosse estrondosa, como uma erupção do Vesúvio. Nos cinco minutos que se seguiram, fumei por todos os poros, como uma casa em construção a arder lá dentro. Acabou-se o narguilé para mim. O fumo sabia mal, e o sabor das mil línguas de infiéis agarrado ao bocal de latão era ainda pior. Estava a ficar desanimado. De agora em diante, sempre que vir o Grande Turco de pernas cruzadas a fumar narguilé, com um ar de imenso êxtase, num embrulho de tabaco de Connecticut, já sei que ele é um charlatão sem vergonha.”

A Viagem dos Inocentes. Mark Twain, Tinta-da-China, 2010.
Foto: Discoteca Aura, Antalya. 16.05.2011

Santa Sofia em dez minutos e um par de meias

“A Mesquita de Santa Sofia não me pareceu nada de especial. Devo ser eu que tenho mau gosto. Seja. É o celeiro mais vetusto do mundo pagão. Julgo que todo o seu interesse reside no facto de ter sido concebida como um templo cristão e depois transformada numa mesquita, sem grandes alterações, pelos conquistadores muçulmanos. Fizeram-me descalçar as botas e entrar lá de meias. Apanhei uma constipação, e prendeu-se-me às meias uma tal série de porcarias e coisas peganhentas e gordurosas, que gastei mais de duas mil calçadeiras para conseguir tirar as botas nessa noite, e mesmo assim acabei por descascar algum couro cristão. Não exagero numa única calçadeira.
Santa Sofia é um colosso de uma igreja, com trezentos ou quatrocentos anos, e suficientemente feia para ser muito mais velha. Diz-se que a sua imensa cúpula é mais maravilhosa do que a da Catedral de São Pedro, mas a sua sujidade é muito mais prodigiosa do que a sua cúpula, embora nunca falem dela. A igreja tem cento e setenta pilares, cada um deles feito numa única peça, todas elas de mármores dispendiosos de várias qualidades – mas vieram de templos antigos de Baalbek, Heliópolis, Atenas e Éfeso, e são umas ruínas completas, feias e repugnantes. Já tinham mil anos quando esta igreja era nova e, nessa altura, deviam produzir um contraste horrível – se é que os arquitectos de Justiniano não lhes limparam a cara. No interior, a todo o diâmetro da abóbada lê-se uma inscrição em caracteres turcos, trabalhada em mosaicos dourados, que parece tão espampanante como um letreiro de circo; os pavimentos e as balaustradas de mármore estão num estado lastimável e sujo; por toda a parte, a perspectiva é toldada por uma teia de cordas suspensas das alturas vertiginosas da cúpula, de onde se penduram inúmeras lamparinas de óleo corroídas e miseráveis, e ovos de avestruzes, a seis ou sete pés do chão. Turcos esfarrapados agachavam-se e sentavam-se por toda a parte a ler livros, a ouvir sermões, ou a receber lições como gaiatos, e havia outros tantos em mais de cinquenta sítios a curvar-se e a endireitar-se, e a curvar-se novamente, e a prostrar-se aos beijos no solo, sempre a murmurar preces, e a fazer esta ginástica até ficarem certamente muito cansados.
Por todo o lado, grassava a sujidade e o pó e o desmazelo e a escuridão; por todo o lado, havia sinais de uma antiguidade ancestral, mas sem nada de emocionante ou de belo; por todo o lado, os mesmos grupos de grandessíssimos pagãos; por cima, os mosaicos variegados e a teia de cordas dos candelabros; e em parte nenhuma, nem uma só coisa que nos conquistasse a afeição ou a admiração.
As pessoas que entram em êxtase com Santa Sofia, de certeza que deve ser pelos guias de viagens (onde cada igreja vem «considerada pelos especialistas como a estrutura mais maravilhosa, sob vários aspectos, alguma vês vista»). Ou então são aqueles velhos coca-bichinhos dos confins da Nova Jérsia que se aplicam denodadamente a aprender a diferença entre um fresco e uma boca de incêndio, e a partir daí já se acham no direito de expressar a sua emoção crítica sobre todas as pinturas, esculturas ou estruturas arquitectónicas que lhes aparecem à frente.”



 
A Viagem dos Inocentes. Mark Twain, Quetzal, 2011.
Fotos: Mesquita de Santa Sofia. 17.05.2011.


Turcas


 
“[…] depois há esquadrões de mulheres turcas que pairam por toda a parte em silêncio, cobertas da cabeça aos pés de túnicas esvoaçantes, e véus de neve em volta das cabeças, revelando apenas os olhos, e uma noção muito vaga e difusa das suas feições. Quando as vemos deslocarem-se ao longe nas arcadas sombrias do Grande Bazar têm o mesmo aspecto que deviam ter os cadáveres amortalhados quando emergiram das campas entre os coriscos e os trovões e os terramotos que rebentaram no Calvário naquela noite terrível da Crucificação. Uma rua de Constantinopla é um cenário que basta ver uma vez.”

A Viagem dos Inocentes. Mark Twain (Tinta-da-China, 2010).

Fotos: Istambul, à entrada do Grande Bazar. 17.05.2011. Na foto da direita, a mulher esconde o rosto ao aproximar-se da câmara fotográfica.

Fotos: Mesquita Azul. 17.05.2011


Fotos: Mesquita Azul. 17.05.2011

Turkey

“«Perus. Na Turquia!», exclamei. «Pergunto a mim mesmo se é por isso que se chamam…»
Mas não é. Estas aves receberam o seu nome da pintada-comum africana que, importada através de Istambul, se chamava galo-da-Turquia.”

in O Grande Bazar Ferroviário, Paul Theroux (Quetzal, 2011).

O pai dos Turcos


“Foi no caminho para Üsküdar que tive a percepção do que até aí me aborrecia na Turquia. O pai dos Turcos, que é o que o seu apelido significa, foi Mustafá Kemal Atatürk, e, seja onde for que se vá na Turquia, vêem-se fotografias, retratos e estátuas dele; está em cartazes, em selos, em moedas – sempre o mesmo perfil contraído de banqueiro. O seu nome é dado a ruas e praças e entra em quase todas as conversas que se têm no país. O rosto tornou-se emblemático, em forma de estrela amolecida, com as sugestões de um nariz e um queixo, e é omnipresente como o carácter simplificado que os chineses usam para espantar diabos. Atatürk chegou ao poder em 1923, declarou a Turquia uma república, e, por via da modernização, encerrou todas as escolas religiosas, dissolveu ordens dervixes e introduziu o alfabeto latino e o código civil suíço. Morreu em 1938 e foi essa a minha percepção: a modernização parou na Turquia com a morte de Atatürk, às nove horas e cinco minutos de 10 de Novembro de 1938. Como que para demonstrar isso, o quarto em que morreu está como o deixou e todos os relógios do palácio estão nas 9h05. Isto parecia explicar a razão pela qual os Turcos se vestem tipicamente como se vestiam as pessoas em 1938, com camisolas castanhas peludas e meias com padrão de losangos, com calças largas listradas e fatos azuis de sarja com ombros enchumaçados, ostentando lapelas que parecem asas e um lenço de três pontas no bolso de lenço. O cabelo é ondulado, com brilhantina, e o bigode, encerado. […] Isto tudo leva uma pessoa à conclusão inevitável de que, se o zénite da elegância otomana foi o reinado no século XVI de Suleimão o Magnífico, a maré alta da elegância moderna foi em 1938, quando Atatürk ainda estava a moldar a moda turca com base nos tímidos modelos do Ocidente.”

in O Grande Bazar Ferroviário, Paul Theroux (Quetzal, 2011).
Ao alto, a minha fotografia da imagem do rosto de Atatürk. Tirada em 15 de Maio 2011, num miradouro de Antalya.

domingo, 22 de maio de 2011

A verdade contrafeita

À saída do Éfeso. 14.05.2011

Porta-chaves para todos os tipos de fechaduras

13.05.2011

Píndaro e o destino


"A bênção não aparecerá aos homens sem esforço, e é um
deus que a cumpre hoje, seguramente. O que está destinado
não pode ser evitado, mas o tempo, num golpe inesperado,
há-de conceder-nos algumas coisas que contrariam todas as
expectativas. Outras, porém, não ainda."

Excerto de "XII. Para Midas de Agrigento, vencedor no concurso de flauta" (490 a.C.). In Odes. Píndaro (tradução de António de Castro Caeiro, Quetzal, 2010).

Em cima, a minha fotografia (13.05.2011) da imagem de Píndaro no Museu de Afrodísias.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O intérprete

Esta semana no Babelia
http://www.elpais.com/articulo/portada/Pietro/Citati/lector/infatigable/jovial/elpepuculbab/20110507elpbabpor_36/Tes

Pietro Citati, un lector infatigable y jovial

CARLOS GARCÍA GUAL 07/05/2011

Ensayo. La luz de la noche no trata de los grandes mitos, como dice el subtítulo añadido, sino de algunos de los más espléndidos relatos de la tradición literaria universal, desde los antiguos griegos a Leopardi, a través de famosos textos cristianos, orientales, árabes, hebreos, y crónicas de Indias. Pero, como Citati recuenta esas historias inmortales de tan largos ecos, podría acaso decirse que esa literatura mágica espejea y recrea fulgores míticos. Escribe acerca de dioses y héroes griegos, como Hermes y Ulises, glosa el amor de Cupido y Psique en la novela de Apuleyo (uno de sus autores predilectos), y evoca el retumbante Apocalipsis de San Juan, las apasionadas Confesiones de Agustín, y los intrincados relatos de China, como la gran novela El sueño del pabellón rojo, y el mágico entramado de Las mil y una noches, y episodios históricos tan trágicos como la conquista de México y de "la muerte de los dioses" (narrada por el Inca Garcilaso), y otros famosos textos y fantasías inolvidables. Ya había yo leído este libro (Seix Barral, 1997), pero he vuelto a leerlo en esta nueva y excelente traducción de Díaz de Atauri con tanto placer como años atrás. Porque en sus páginas recobramos la intensa fascinación de esas lecturas mágicas y las releemos en una prosa entusiasta y vibrante. Citati no sólo es un formidable lector, sino un gran relator que conjura los encantos de estos viajes con entusiasmo y agilidad. Sin la menor pedantería y sin lastre erudito invita a viajar por la mejor literatura, y nos contagia ese placer viajero. Invita a compartir su admiración, su alegría experta y jovial.

La luz de la noche. Los grandes mitos en la historia del mundo
Pietro Citati
Traducción de Juan Díaz de Atauri
Acantilado. Barcelona, 2011
475 páginas. 29 euros


Citati combina la agilidad narrativa del ensayista que escribe en periódicos con la mirada de un experto biógrafo
Si La luz de la noche enfoca ante todo textos fantásticos, en El mal absoluto se dedica a evocar a los autores de grandes novelas -sus biografías y rasgos personales- para así introducirnos en los laberintos imaginarios de la literatura del XIX. Siempre con cálida y sutil simpatía hacia sus personajes y sus destinos. Dibuja los escenarios con vivo colorido y analiza la psicología de sus héroes, sin eludir la reflexión filosófica, como ya insinúa el título del libro. (Apropiado sólo a ciertos capítulos). Por ejemplo, Citati relata, en ágil y emotivo resumen, Crimen y castigo y Los demonios, y luego, en contraste, lances de la vida patética de Dostoievski, y resalta su intensidad dramática, del autor y sus personajes, y en esa convergencia trágica (Raskolnikov implica en algo a Dostoievski, y viceversa) nos invita a una más vivaz comprensión de vida y textos.
Como es sabido, ciertos críticos literarios del pasado siglo postularon un enfoque de la literatura centrado en el análisis formal de los textos -sus estructuras y temas- augurando la "muerte del autor". Nada más contrario a esos formalismos que esta vivaz actitud crítica de Citati, que combina la agilidad narrativa del ensayista que escribe en periódicos con la mirada de un experto biógrafo muy atento al contexto histórico. Justo es recordar sus espléndidas biografías de novelistas modernos: Goethe, Tolstói, Proust, Katherine Mansfield y Kafka. (Sólo la de Kafka está traducida al español). En todas ellas hallamos el mismo ensamblaje vivaz de vidas y ficciones, es decir, de lo vivido y lo inventado, del mundo real y el imaginario. En ese juego se muestra la más auténtica y airosa hermenéutica literaria, la que explica cómo la literatura de verdad, la de los relatos más clásicos, enriquece nuestra sensibilidad y nuestro imaginario. Los ensayos de Citati van en esa dirección, y reiteran ese estilo fresco, amable, pictórico, entusiasta.
De modo ejemplar lo hace Ulises y la Odisea. El pensamiento iridiscente. (En italiano, La mente colorata). Admirable comentario del gran poema novelesco que es, sin duda, el más irisado y moderno de los textos míticos, con su versátil protagonista, el héroe taimado de muchas tretas, y sus múltiples y atractivas figuras secundarias. Sus lances y personajes quedan ahí retratados con seductora vivacidad que en otros libros tienen Robinson Crusoe, o los héroes de Manzoni, Dickens, Stevenson o Henry James.
Todo lector es un intérprete, pero hay lectores que por su talento narrativo y su fina y fervorosa sensibilidad -como Vargas Llosa o Claudio Magris- resultan ser guías excepcionales en nuestros viajes literarios, en la relectura de los grandes relatos. Uno de esos maestros de la lectura, infatigable y jovial, es Pietro Citati.

El mal absoluto. En el corazón de la novela del siglo XIX. Pietro Citati. Traducción de Pilar González Rodríguez. Galaxia Gutenberg. Barcelona, 2006. 528 páginas. 24,20 euros. Ulises y la Odisea. El pensamiento iridiscente. Pietro Citati. Traducción de José Luis Gil Aristu. Galaxia Gutenberg. Barcelona, 2008. 354 páginas. 35 euros.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Por um espanto

Nas piores semanas leio um livro; nas melhores nenhum, quatro, cinco ou seis. Nunca li tanto como agora, desde o tempo das aventuras que a minha irmã me trazia da biblioteca à razão de duas por dia. Tenho os meus essenciais e leio tanto para reforçá-los como para os substituir, para não me esquecer deles noutro que procuro. Leio para não me esquecer.
Leio para não me esquecer na roca dos dias, para escapar à minha representação. Somo-nos; não somos. Leio por um espanto. Sublinho, anoto e publico contra o esquecimento. Às vezes escrevo como exercício de consolidação ou de dispersão.
Leio por ressentimento – é o que é – e se escrevo é por vingança. Cada livro abre e deixa um rasto de ignorância. Esta consciência é a única vitória da leitura e dura o tempo de também dela nos esquecermos.
Não sei se leio contra a abnegação, se por ela. Nem sequer sei se a leitura é abnegação já consumada, o esquecimento na sua rememoração. E rio-me no espanto de a cultura vir então a ser o conjunto de jogos / representações com que cada pessoa exercita a sua abnegação, quando não está a exercê-la. A abnegação transferida para aquilo a que cada um toma por seu. Como nos afectos, meu amor.

domingo, 17 de abril de 2011

o vaso e a flor

Ordenou um vaso à flor
que o sol fosse buscar
e a pobre, por amor,
foi subindo sem parar.
Tão depressa ela subia
que cedo chegou a altura,
quanto mais ela crescia,
maior era a curvatura.
Um vaso leve, inclinado
pelo peso duma flor sua,
teve um final azarado,
escaqueirou-se na rua.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Três delírios de uma cabrita seguidos de uma piada

1.
"A mente deveria apenas servir para analisar e viabilizar o que sentimos e não para, como acontece actualmente, aniquilar o que sentimos através da razão e dos medos."

2.
"Se notares, todas as pessoas que perdem um emprego ou é porque intimamente não gostavam dele ou porque o utilizavam para parecer que eram algo mais do que realmente São."

3.
"Quando a perda se consuma, fica um sentimento de revolta difícil de controlar.
Qual é a solução?
A de sempre. Aceitar. Aceitar que atraiste esse despedimento ou essa doença ou essa falência para prestares mais atenção às tuas escolhas. (...)"

E a piada:

"Este livro e este CD com o exercício substituem o curso?
Não, absolutamente. As pessoas deveriam ler este pequeno livro e fazer este exercício do Eu Superior antes do curso, para que aproveitassem melhor todos os recursos espirituais que ensinas no curso."

Alexandra Solnado in O Eu Superior e outras lições de vida (Pergaminho, 2011)

sábado, 2 de abril de 2011

Resumo do Resumo

É assim

Não interessa o que se diz, o que se escreve
não interessa. Não interessa como se diz
seja embora o como não de todo isento
de interesse. Não interessa a hora, o dia
o lugar. Não interessa onde nem a quem
nem para quando nem para quê
Não interessa porque se diz o que se diz
Muita coisa há que não interessa, aliás
quase nada interessa tratando-se de dizer
Não interessa quando se diz, mas interessa
menos ainda, isto é, nada mesmo
o que se diz ou o que tal queira dizer
Interessa o quê, então? Interessa o mar, o mar
em si mesmo e aquilo que acontece quando o mar
nos cai em cima, prevenida ou desprevenidamente
O mar, o mar sim interessa, mas
convenhamos, o que é que há a dizer
quando o mar nos afaga ou nos cai todo em cima
e nos submerge e afoga? Toda a água
todo o frio, todo o azul, todo o verde que há no mar
Como soi agora dizer-se ao iniciar uma qualquer
explanação, é assim: não há nada a dizer
e quando então alguma coisa se diz, o que é que isso
pode querer dizer ou que raio de interesse poderá ter?
Estão a ver a situação: o mar, toda a monstruosa
porção de água que o mar é, todas as cores
todo o frio e toda a espuma, toda a luz também
e escuridão que há no mar, tudo em cima
de nós. Assim de repente. Que interesse
tem dizer? E dizer o quê? E como?

Rui Caeiro in "Resumo - a poesia em 2010" (Assírio & Alvim, 2011).

Serenidade

"Senhor, conceda-nos a
serenidade para aceitar
as coisas que não podemos mudar,
a coragem para mudar as coisas
que conseguimos mudar,
assim como a sabedoria
para as distinguir."

Reinhold Niebuhr citado por Gabriel García de Oro in "Storytelling - a magia das palavras"  (GestãoPlus, 2011).

domingo, 27 de março de 2011

O eixo da noite

Noite, cortina, cabelo ondulante,
vidraça de mar,
poiso de mulher,
baloiço de agravo e de amanso em véspera de sangue.
A noite exemplar é uma arma apontada
ao queixo que roça
o gatilho, a mão,
o cano na boca
que um beijo fulmina
na rebentação
detrás da cortina indiferente.

O eixo da noite é uma janela suada que hidrata os meus olhos encostados.

Hoje o mar é só um fundo de mar
e os meus olhos são o fundo dos meus olhos.

No fundo da noite carreguei os meus olhos
com a água pesada deste mar e caminho
a rua deserta
até me afundar nas pedras.

Para acabar de vez com a poesia: Adília Lopes

No final de cada poema interrogar
e o que é que tu queres que eu te faça?

sábado, 19 de março de 2011

Ponto de focagem do oceano. Pia Tafdrup (Quetzal, 2004)

NO ESPELHO

No espelho
o olhar desaparece

às vezes desalojado
no meu próprio corpo

às vezes
angustiado
pela angústia
que rola
para lá e para cá como destroços
na rebentação

raspo com um dedo
o vidro
e oiço o mundo gritar.

*

MIL VEZES NASCIDO

[...]
71.
Se formos para o céu,
pergunta a criança,
o esqueleto também vai,
e todos os ossos que o cão comeu?

[...]
97.
Não procurem a caixa negra da poesia,
não tem respostas gravadas,
está cheia de perguntas e perguntas dos sonhos
ou de um silêncio onde é penoso entrar.

*

DEZ INVOCAÇÕES

[...]
Deus, meu Deus
estou deitado num banho de ácido
à espera de melhores tempos

[...]
Deus, meu Deus
sou um corpo
que a linguagem toca

"O valor da fábula"

"Esta é daquelas ideias que nada tinha de perigoso quando foi engendrada, mas que descambou num assunto imprevisivelmente demasiado polémico. À semelhança do que se tem feito com outras figuras históricas - Tutankhamon, Cristóvão Colombo, entre outros -, pretendia-se não só dignificar o túmulo do nosso primeiro rei, como analisar antropologicamente os seus restos mortais. Fundamentalmente, este estudo permitiria aceder a episódios inéditos da vida do fundador do nosso país. Daria igualmente lugar a uma confrontação sem precedentes com as fontes históricas e permitiria dar «uma cara» a um dos grandes mitos da nossa história. Um estudo não invasivo, antes pelo contrário, que permitiria limpar os restos ósseos do rei; uma análise segura, pois não deveria ser necessário sair da Igreja de Santa Cruz para a concretizar; um estudo rápido, que deveria ser realizado em dois dias, para logo colocar as ossadas de novo no túmulo, provocaram variados anseios que o inviabilizaram. [...] Conjecturou-se sobre a possibilidade de os resultados poderem vir a mexer na história de Portugal. [...] Ficámos sem saber se o rei era alto e robusto, se na Batalha de Badajoz fracturou severamente uma perna a ponto de não mais ter montado a cavalo, se a sua morte ocorreu de facto numa idade muito avançada, se padeceu de alguma doença que deixasse marcas nos ossos. Ficámos sem conhecer a cara do rei. Seria tudo isto perigoso?"

"O valor da fábula", Eugénia Cunha in Ideias Perigosas para Portugal (coord. João Caraça e Gustavo Cardoso, Tinta da China, 2010).

domingo, 13 de março de 2011

O deus que é transparência. António Ramos Rosa ("Nenhum deus me acompanha pelas ruas desertas.")

Ninguém me saúda nas esquinas do papel.
Nenhum deus me acompanha pelas ruas desertas.
Mas nos dedos sinto o rumor de um segredo vegetal.
É como se procurasse alargar a mão dos deuses.
É como arder com a água na brancura ofuscante
da ressaca. E as palavras da casa se levantam
a janela a porta a cama e a cadeira.
São presenças espessas e nítidas no perfil.
Assim se forma um círculo com energia erguida
nas sílabas preenchidas pela coerência do mundo.
Maternas são as sombras em torno de um centro verde
que foi talvez um deus antigo que se esqueceu
e o esquecimento é o seu signo: a transparência.

De "Acordes" (1989). In Antologia Poética (Dom Quixote, 2001).

Um poema interativo

A quem me pedir um poema interativo,
direi que neste exato instante o poema é vida própria, acidente,
mão de um qualquer deus a masturbar o leitor,
colhidos os órgãos na passadeira tensa da leitura.

A seguir, neste antro da moral,
vem o leitor interativo, que encorpa e masturba o poema.

A quem mo pedir,
direi que tudo e nada já estão ditos, e do tudo até ao nada.
Talvez falte cursar o outro caminho, a rua deserta,
desnascer
e renascer no hiato habitando a fuga.
 E é talvez neste talvez que se funde e fode o poema.

Pronto.
O poema está agora a borrifar-se nos olhos interativos do leitor.

terça-feira, 8 de março de 2011

Se o leitor escreve, tu escreves. Eduardo Prado Coelho

"(...) E depois: ler pode ser também escolher a posição certa para ler, partindo de todo um conjunto de protocolos que criaram a predisposição para a leitura. E agora, movido pelo entorpecimento do corpo, pelo formigueiro dos invisíveis estalidos musculares, mudar de posição, como quem muda de posição durante o sono, numa gestualidade não intencional, ou como quem muda de posição numa relação amorosa - porque as duas referências afloram na expressão «as posições do leitor», neste balanceamento entre o amor e o sono que se vai estabelecendo num indiferenciado tecido de intimidade cega.
Que significa ler? Etimologicamente, aquele que lê é aquele que escolhe, que vai colher na árvore dos textos os frutos escolhidos: ler é eleger, escolher as palavras que emergem do fio do discurso, dar-lhes o brilho e a cor que lhes convêm, e por isso todo o leitor é um eleitor, e não há leitura sem uma política de leitura, e não há verdadeira leitura sem uma democracia da leitura."

"E foi dessa leitura que cada um ganhou o seu estatuto de «intelectual», aquele que tem a capacidade de compreender, porque é capaz de 'inter-legere», isto é, de escolher naquilo que há para ler o que vale a pena ser lido, e escolher no atropelo dos textos o que vale a pena ser retido para dar aos textos o sentido que eles têm, ou melhor, esse sentido que eles podem ter, porque ler coloca-nos sempre no futuro de cada texto: o leitor escreve para que seja possível. E assim cresce a inteligência de cada um na inteligência de todos, colocando-se o intelectual no seu lugar de ser orgânico, elemento de um corpo que aumenta (o autor é aquele que aumenta o mundo e que nisso provisoriamente se autoriza) em sentidos e sentido, preso da paixão do inteligível, disponível para o processo da inteligência comum, e no entanto sempre privada, sempre no círculo da leitura, sempre na luz do «abat-jour», murmuradamente como diz o vice-cônsul no India Song: o «amor é uma inteligência de ti» - dessa mulher desconhecida que dança até de madrugada.
Havia um termo para «amor», termo antigo e amarelecido, que era «dilectio», e dizia-se «filho dilecto», isto é, filho escolhido, ou «o amigo dilecto», ou (menos, infinitamente menos) o «amante dilecto», e no entanto era sempre de amor que se tratava, entre aquele que diligentemente (palavra que começou por dizer escolha feita com consciência e empenho, e que depois se deixou ser outra coisa, e passou a designar o cuidado que se põe em fazer depressa uma coisa) escolhe um ser, ou objecto amado, e uma pequena zona do mundo, incisão ou cicatriz, que passa a ser o lugar, o corpo, o olhar, o gesto ou o ciciar da pele que se tornam, entre todos os possíveis, os que se dizem predilectos. Trata-se então de não neglicenciar o que se elegeu ou recolheu, e criar em torno desse amor a sua lenda, isto é, o seu corpo de palavras a serem lidas como um mito, lenda e legenda de um encontro, de uma imagem, de uma fotografia, o fotograma dilecto, a fotografia delida, a fotografia lida e relida na gramática da sua luz, no drama da sua memória, na elegância de um olhar silencioso, na repetição impossível do nome que a nomeia."

"E este acto de ler, na solidão das suas regras, é sempre algo que se empolga até ao outro pólo da comunicação: o incomunicável faz que se toquem as mãos de um «tu» face a um «eu». Nessa espécie de mistério interminável em que um «mundo» se identifica com um «tu», na medida em que cada «tu» é sempre o ponto de partida de um mundo a abrir-se a si mesmo. Daí essa identidade perplexa e problemática mediada pelo vazio de dois pontos: «abria-se o mundo: tu». Mas como aquele que lê é também aquele que escreve, na medida em que ler é começar a escrever, existe sempre um destinatário da leitura tal como existe, sussurrado ou explícito, um destinatário da escrita (secreto, cifrado, rasurado, arfante)."

"«Algures como no passado» - a leitura cria o seu próprio tempo, que é feito da distorção de todos os tempos conhecidos: «algures então, como no futuro». Mais: o livro passa a ser relógio, é ele o instrumento de medição do tempo, uma hora de leitura, vinte horas de leitura, vinte anos depois.
Mas o primeiro efeito do livro no corpo do leitor é um sentimento de vazio enquadrado: uma ausência que se avoluma, o medo que dá caminhar no vazio, a luz (branco no branco, à maneira de Malevitch), na escuridão absoluta de uma luz que cega, e ao mesmo tempo - traço fundamental - um efeito de enquadramento: toda a leitura põe num espaço um infinito, põe o mar sobre uma mesa, põe o céu sobre uma toalha, põe o jogo do mundo no rectângulo de um bilhar. Por isso, a cada passo se faz referência a fotografias, telas de pintura, imagens de cinema, janelas. O infinito, a explosão, a fenda vulcânica, só existem porque alguém coloca um traço à sua volta, um traço de palavras a lápis: «isto é um livro». Este livro a abrir é um livro, uma ilimitação íntima. Antes de ser sentido, ou dor, ou grito, ou murmúrio, ou mancha, a letra é um ardor, a letra arde, ardia - no espaço da página. Para além do ser e da aparência, «um simulacro». A leitura é uma máquina do mundo que se acelera pela paciência de uma desmedida lentidão: «o leitor ia virando as páginas que muito lentamente ondulavam.»"

"O segredo de cada texto é dizer-nos que o tu que nele se inventa é o tu que qualquer eu pode inventar, mas é também o único tu que esse texto autoriza: o tu que tu, definitiva e incompreensivelmente, tu és, e recomeçarás a ser, em todos os textos que eu escrever, ou ler. E por isso o que num texto se apaga é o que num texto se ilumina: o irrepetível de um vazio aceso. A rasura é a aparição. A sintaxe é o pórtico. A história narrada é a ponte destruída - bombardeada e intacta."

in O leitor escreve para que seja possível. Manuel Gusmão, Eduardo Prado Coelho e Duarte Belo (Assírio e Alvim, 2001).

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Tempos de atribulação. José Ribeiro de Sousa (em Trilogia de Sonetos, vol. I, Folheto Edições, 2007).

Três sonetos monossilábicos


Tantos
anos!
Quantos
danos!

Santos
planos...
Prantos
lhanos...

Caras
em
Dor

Jarras
sem
flor...

*

De homem
Só,
Tomem
Dó.

Rojem
Pó.
Olhem
Job...

Tudo
Mudo
Pende...

Logo
Dobro
Teve...

*

Calma
Cor
Dor
D´alma

Palma
Flor.
Mor
Salma.

Corre
Mago
Gesto.

Morre
Vago,
Lesto...

Talvez tudo. Fátima Pissarra (Universitária Editora, 2001)

Fugiram-nos os pássaros das mãos
quando nossos corpos deixaram de galopar as nuvens.

*

Se algum dia os barcos
voltarem a singrar nos teus olhos
o meu sexo não terá sido rasgado em vão.

*

De todos os meses são esta fome e esta sede,
por isso todos os beijos
sabem a fruta e têm cheiro a flores,
e neste apertadíssimo abraço
nenhum de nós sabe
onde termina o eu
e começa o tu,
secreto desassossego das raízes
debaixo do sol púbico partilhado

Prostração. Rita Beja (Corpos Editora, 2005)

II

tudo se resume à terra gasta
os lírios
o berço das águas
o pó dos homens

desci do alto
ilusões de um dia
sem nome
sem data

só a certeza aumenta a fasquia
e me faz querer viver depressa

compreendo a indiferença
um quase medo
como um pêndulo no caule
das flores em fim de estação

e nada mais interessa
quando se inala a tristeza
de um dia de aniversário

rapidamente tornarei aos peixes
e verei nas escamas
o crude de minha vestimenta

encantamento? Talvez um dia
e talvez esse dia perdure
talvez nunca chegue

morro e renasço vezes sem conta
e a dor do repasto
tornou-se um hábito frequente

tiro fotografias aos mortos
devoro-lhes o último foco de energia
evoco um cântico
quase celeste
quase platónico

faço-os vibrar de dentro do húmus
a última valsa antes do retomar do ciclo

também o seguirei
também celebrarei as estações

doando aos juncos um novo banco
de rio
doando às cotovias a minha voz
também elas cantarão os mortos

tudo se resume à terra gasta

Do obscuro ofício. Paulo Moreiras (Noctívaga Editores, 2004)

por vezes o acaso
acaba por ser alguém
que sempre esteve
à nossa espera
e entre ocasos
apenas erramos os caminhos

*

com ocas revoltas
justificamos
as frustrações de não sabermos
mudar o que está errado

e errados continuam
os nossos gestos
os nossos movimentos

em vez de terra
somos amargo lodo
e no lodo amargamente
nos vamos afundando

*

tudo me fascina
tudo me consome
pena é não poder
desmultiplicar-me
e ser eu

O médico inverosímil. Ramon Gómez de la Serna (Antígona, 1998)

DEPOIS DO CARNAVAL

Depois do Carnaval tenho muitos doentes que recorrem ao meu consultório incomum. As almas, as vidas e os seres destes doentes ficam perturbados com a mascarada.
É-me muito difícil curar nesses doentes o logro, devolver-lhes a verdade, arrancar-lhes a máscara, tirá-los da obsessão.
«Ficou neste estado desde o baile de máscaras», dizem-me muitas vezes em casa dos pacientes, ainda com a elegância daquela noite nas suas atitudes de enfermos, os homens envergando fraque, as mulheres de vestido posto.
Lembro-me de uma a quem perguntei:
- A si que lhe disseram ao ouvido?
Ficou ruborizada, arroxeada, cor de vinho.
- Não lho direi, não lho posso dizer; nunca o direi a ninguém, nem ao meu confessor.
Obstinei-me. Fui insistindo, dia após dia, porque o humor herpético que nela se declarara desde o dia do baile lhe estava já a infectar o sangue e não havia maneira de o desfazer. Era cada vez mais intensa a borbulhagem que tinha na cara, mais vivos os botões roxos e as veias salientes que a cobriam quase por completo.
Tanto insisti, afiançando-lhe que só tirando-lhe do corpo o que lhe tinham dito ao ouvido se podia curar, que um dia, após ter-me pedido que lhe prometesse, sob palavra de honra, que nunca o diria a ninguém, me transmitiu por fim as palavras afrontosas e de vida interminável que ainda hoje lavram na sua alma um prazer sórdido, uma pestilência singular.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

As palavras transferidas. XIV - As estações

Hoje vi passar Deméter abnegada em demanda da filha
que desde ontem não mete os pés em casa, sem aviso.
Dantes era eu que a procurava e não guardo de todo
as melhores recordações, mas são as que há. Perséfone
não quis a minha entrega ingénua e luminosa
no tempo em que todas as palavras, as coisas e os artefactos
se transferiam para o seu nome, eixo do mundo.
Deméter brevemente saberá
que a sua filha se apostou numa cultura underground,
que não poderia continuar eternamente de roda da mãe
e que há-de voltar quando puder
para pôr a conversa em dia entre romãs e bolinhos.
Quando faz mau tempo (e como tem de ser),
penso que é Deméter, resignada, a vir sentar-se a meu lado
para me copiar, copiosamente.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

As palavras transferidas. XIII – As metáforas

Um reflexo é somente a evidência de um reflexo,
não há imagens na imagem nem corpo no espelho,
tocamos nos vidros para dissimular a existência
como em todas as coisas e nos artefactos
ou uma tarde à janela para refletir a luz e transpor
o mundo, a metáfora das expectativas.
Somos reflexos, reflexivos vamos,
seremos felizes, teremos raízes,
folhagem nos braços erguidos ao céu,
rodaremos sombras convocando o chão.
Mundo é a metáfora que somos, a palavra transferida
para o medo, o ajuste indizível da carne no golpe,
a janela fechada com a cabeça de fora
travando o cigarro, as veias e a voz
numa tarde transposta para o silêncio, mais um dia
por habitar sob o prisma estilhaçado das artes vãs e das ciências falíveis
como o amor e o esquecimento.