segunda-feira, 23 de maio de 2011

Santa Sofia em dez minutos e um par de meias

“A Mesquita de Santa Sofia não me pareceu nada de especial. Devo ser eu que tenho mau gosto. Seja. É o celeiro mais vetusto do mundo pagão. Julgo que todo o seu interesse reside no facto de ter sido concebida como um templo cristão e depois transformada numa mesquita, sem grandes alterações, pelos conquistadores muçulmanos. Fizeram-me descalçar as botas e entrar lá de meias. Apanhei uma constipação, e prendeu-se-me às meias uma tal série de porcarias e coisas peganhentas e gordurosas, que gastei mais de duas mil calçadeiras para conseguir tirar as botas nessa noite, e mesmo assim acabei por descascar algum couro cristão. Não exagero numa única calçadeira.
Santa Sofia é um colosso de uma igreja, com trezentos ou quatrocentos anos, e suficientemente feia para ser muito mais velha. Diz-se que a sua imensa cúpula é mais maravilhosa do que a da Catedral de São Pedro, mas a sua sujidade é muito mais prodigiosa do que a sua cúpula, embora nunca falem dela. A igreja tem cento e setenta pilares, cada um deles feito numa única peça, todas elas de mármores dispendiosos de várias qualidades – mas vieram de templos antigos de Baalbek, Heliópolis, Atenas e Éfeso, e são umas ruínas completas, feias e repugnantes. Já tinham mil anos quando esta igreja era nova e, nessa altura, deviam produzir um contraste horrível – se é que os arquitectos de Justiniano não lhes limparam a cara. No interior, a todo o diâmetro da abóbada lê-se uma inscrição em caracteres turcos, trabalhada em mosaicos dourados, que parece tão espampanante como um letreiro de circo; os pavimentos e as balaustradas de mármore estão num estado lastimável e sujo; por toda a parte, a perspectiva é toldada por uma teia de cordas suspensas das alturas vertiginosas da cúpula, de onde se penduram inúmeras lamparinas de óleo corroídas e miseráveis, e ovos de avestruzes, a seis ou sete pés do chão. Turcos esfarrapados agachavam-se e sentavam-se por toda a parte a ler livros, a ouvir sermões, ou a receber lições como gaiatos, e havia outros tantos em mais de cinquenta sítios a curvar-se e a endireitar-se, e a curvar-se novamente, e a prostrar-se aos beijos no solo, sempre a murmurar preces, e a fazer esta ginástica até ficarem certamente muito cansados.
Por todo o lado, grassava a sujidade e o pó e o desmazelo e a escuridão; por todo o lado, havia sinais de uma antiguidade ancestral, mas sem nada de emocionante ou de belo; por todo o lado, os mesmos grupos de grandessíssimos pagãos; por cima, os mosaicos variegados e a teia de cordas dos candelabros; e em parte nenhuma, nem uma só coisa que nos conquistasse a afeição ou a admiração.
As pessoas que entram em êxtase com Santa Sofia, de certeza que deve ser pelos guias de viagens (onde cada igreja vem «considerada pelos especialistas como a estrutura mais maravilhosa, sob vários aspectos, alguma vês vista»). Ou então são aqueles velhos coca-bichinhos dos confins da Nova Jérsia que se aplicam denodadamente a aprender a diferença entre um fresco e uma boca de incêndio, e a partir daí já se acham no direito de expressar a sua emoção crítica sobre todas as pinturas, esculturas ou estruturas arquitectónicas que lhes aparecem à frente.”



 
A Viagem dos Inocentes. Mark Twain, Quetzal, 2011.
Fotos: Mesquita de Santa Sofia. 17.05.2011.


Sem comentários:

Enviar um comentário