Três sonetos monossilábicos
Tantos
anos!
Quantos
danos!
Santos
planos...
Prantos
lhanos...
Caras
em
Dor
Jarras
sem
flor...
*
De homem
Só,
Tomem
Dó.
Rojem
Pó.
Olhem
Job...
Tudo
Mudo
Pende...
Logo
Dobro
Teve...
*
Calma
Cor
Dor
D´alma
Palma
Flor.
Mor
Salma.
Corre
Mago
Gesto.
Morre
Vago,
Lesto...
domingo, 27 de fevereiro de 2011
Talvez tudo. Fátima Pissarra (Universitária Editora, 2001)
Fugiram-nos os pássaros das mãos
quando nossos corpos deixaram de galopar as nuvens.
*
Se algum dia os barcos
voltarem a singrar nos teus olhos
o meu sexo não terá sido rasgado em vão.
*
De todos os meses são esta fome e esta sede,
por isso todos os beijos
sabem a fruta e têm cheiro a flores,
e neste apertadíssimo abraço
nenhum de nós sabe
onde termina o eu
e começa o tu,
secreto desassossego das raízes
debaixo do sol púbico partilhado
quando nossos corpos deixaram de galopar as nuvens.
*
Se algum dia os barcos
voltarem a singrar nos teus olhos
o meu sexo não terá sido rasgado em vão.
*
De todos os meses são esta fome e esta sede,
por isso todos os beijos
sabem a fruta e têm cheiro a flores,
e neste apertadíssimo abraço
nenhum de nós sabe
onde termina o eu
e começa o tu,
secreto desassossego das raízes
debaixo do sol púbico partilhado
Prostração. Rita Beja (Corpos Editora, 2005)
II
tudo se resume à terra gasta
os lírios
o berço das águas
o pó dos homens
desci do alto
ilusões de um dia
sem nome
sem data
só a certeza aumenta a fasquia
e me faz querer viver depressa
compreendo a indiferença
um quase medo
como um pêndulo no caule
das flores em fim de estação
e nada mais interessa
quando se inala a tristeza
de um dia de aniversário
rapidamente tornarei aos peixes
e verei nas escamas
o crude de minha vestimenta
encantamento? Talvez um dia
e talvez esse dia perdure
talvez nunca chegue
morro e renasço vezes sem conta
e a dor do repasto
tornou-se um hábito frequente
tiro fotografias aos mortos
devoro-lhes o último foco de energia
evoco um cântico
quase celeste
quase platónico
faço-os vibrar de dentro do húmus
a última valsa antes do retomar do ciclo
também o seguirei
também celebrarei as estações
doando aos juncos um novo banco
de rio
doando às cotovias a minha voz
também elas cantarão os mortos
tudo se resume à terra gasta
tudo se resume à terra gasta
os lírios
o berço das águas
o pó dos homens
desci do alto
ilusões de um dia
sem nome
sem data
só a certeza aumenta a fasquia
e me faz querer viver depressa
compreendo a indiferença
um quase medo
como um pêndulo no caule
das flores em fim de estação
e nada mais interessa
quando se inala a tristeza
de um dia de aniversário
rapidamente tornarei aos peixes
e verei nas escamas
o crude de minha vestimenta
encantamento? Talvez um dia
e talvez esse dia perdure
talvez nunca chegue
morro e renasço vezes sem conta
e a dor do repasto
tornou-se um hábito frequente
tiro fotografias aos mortos
devoro-lhes o último foco de energia
evoco um cântico
quase celeste
quase platónico
faço-os vibrar de dentro do húmus
a última valsa antes do retomar do ciclo
também o seguirei
também celebrarei as estações
doando aos juncos um novo banco
de rio
doando às cotovias a minha voz
também elas cantarão os mortos
tudo se resume à terra gasta
Do obscuro ofício. Paulo Moreiras (Noctívaga Editores, 2004)
por vezes o acaso
acaba por ser alguém
que sempre esteve
à nossa espera
e entre ocasos
apenas erramos os caminhos
*
com ocas revoltas
justificamos
as frustrações de não sabermos
mudar o que está errado
e errados continuam
os nossos gestos
os nossos movimentos
em vez de terra
somos amargo lodo
e no lodo amargamente
nos vamos afundando
*
tudo me fascina
tudo me consome
pena é não poder
desmultiplicar-me
e ser eu
acaba por ser alguém
que sempre esteve
à nossa espera
e entre ocasos
apenas erramos os caminhos
*
com ocas revoltas
justificamos
as frustrações de não sabermos
mudar o que está errado
e errados continuam
os nossos gestos
os nossos movimentos
em vez de terra
somos amargo lodo
e no lodo amargamente
nos vamos afundando
*
tudo me fascina
tudo me consome
pena é não poder
desmultiplicar-me
e ser eu
O médico inverosímil. Ramon Gómez de la Serna (Antígona, 1998)
DEPOIS DO CARNAVAL
Depois do Carnaval tenho muitos doentes que recorrem ao meu consultório incomum. As almas, as vidas e os seres destes doentes ficam perturbados com a mascarada.
É-me muito difícil curar nesses doentes o logro, devolver-lhes a verdade, arrancar-lhes a máscara, tirá-los da obsessão.
«Ficou neste estado desde o baile de máscaras», dizem-me muitas vezes em casa dos pacientes, ainda com a elegância daquela noite nas suas atitudes de enfermos, os homens envergando fraque, as mulheres de vestido posto.
Lembro-me de uma a quem perguntei:
- A si que lhe disseram ao ouvido?
Ficou ruborizada, arroxeada, cor de vinho.
- Não lho direi, não lho posso dizer; nunca o direi a ninguém, nem ao meu confessor.
Obstinei-me. Fui insistindo, dia após dia, porque o humor herpético que nela se declarara desde o dia do baile lhe estava já a infectar o sangue e não havia maneira de o desfazer. Era cada vez mais intensa a borbulhagem que tinha na cara, mais vivos os botões roxos e as veias salientes que a cobriam quase por completo.
Tanto insisti, afiançando-lhe que só tirando-lhe do corpo o que lhe tinham dito ao ouvido se podia curar, que um dia, após ter-me pedido que lhe prometesse, sob palavra de honra, que nunca o diria a ninguém, me transmitiu por fim as palavras afrontosas e de vida interminável que ainda hoje lavram na sua alma um prazer sórdido, uma pestilência singular.
Depois do Carnaval tenho muitos doentes que recorrem ao meu consultório incomum. As almas, as vidas e os seres destes doentes ficam perturbados com a mascarada.
É-me muito difícil curar nesses doentes o logro, devolver-lhes a verdade, arrancar-lhes a máscara, tirá-los da obsessão.
«Ficou neste estado desde o baile de máscaras», dizem-me muitas vezes em casa dos pacientes, ainda com a elegância daquela noite nas suas atitudes de enfermos, os homens envergando fraque, as mulheres de vestido posto.
Lembro-me de uma a quem perguntei:
- A si que lhe disseram ao ouvido?
Ficou ruborizada, arroxeada, cor de vinho.
- Não lho direi, não lho posso dizer; nunca o direi a ninguém, nem ao meu confessor.
Obstinei-me. Fui insistindo, dia após dia, porque o humor herpético que nela se declarara desde o dia do baile lhe estava já a infectar o sangue e não havia maneira de o desfazer. Era cada vez mais intensa a borbulhagem que tinha na cara, mais vivos os botões roxos e as veias salientes que a cobriam quase por completo.
Tanto insisti, afiançando-lhe que só tirando-lhe do corpo o que lhe tinham dito ao ouvido se podia curar, que um dia, após ter-me pedido que lhe prometesse, sob palavra de honra, que nunca o diria a ninguém, me transmitiu por fim as palavras afrontosas e de vida interminável que ainda hoje lavram na sua alma um prazer sórdido, uma pestilência singular.
domingo, 20 de fevereiro de 2011
As palavras transferidas. XIV - As estações
Hoje vi passar Deméter abnegada em demanda da filha
que desde ontem não mete os pés em casa, sem aviso.
Dantes era eu que a procurava e não guardo de todo
as melhores recordações, mas são as que há. Perséfone
não quis a minha entrega ingénua e luminosa
no tempo em que todas as palavras, as coisas e os artefactos
se transferiam para o seu nome, eixo do mundo.
Deméter brevemente saberá
que a sua filha se apostou numa cultura underground,
que não poderia continuar eternamente de roda da mãe
e que há-de voltar quando puder
para pôr a conversa em dia entre romãs e bolinhos.
Quando faz mau tempo (e como tem de ser),
penso que é Deméter, resignada, a vir sentar-se a meu lado
para me copiar, copiosamente.
que desde ontem não mete os pés em casa, sem aviso.
Dantes era eu que a procurava e não guardo de todo
as melhores recordações, mas são as que há. Perséfone
não quis a minha entrega ingénua e luminosa
no tempo em que todas as palavras, as coisas e os artefactos
se transferiam para o seu nome, eixo do mundo.
Deméter brevemente saberá
que a sua filha se apostou numa cultura underground,
que não poderia continuar eternamente de roda da mãe
e que há-de voltar quando puder
para pôr a conversa em dia entre romãs e bolinhos.
Quando faz mau tempo (e como tem de ser),
penso que é Deméter, resignada, a vir sentar-se a meu lado
para me copiar, copiosamente.
sábado, 12 de fevereiro de 2011
As palavras transferidas. XIII – As metáforas
Um reflexo é somente a evidência de um reflexo,
não há imagens na imagem nem corpo no espelho,
tocamos nos vidros para dissimular a existência
como em todas as coisas e nos artefactos
ou uma tarde à janela para refletir a luz e transpor
o mundo, a metáfora das expectativas.
Somos reflexos, reflexivos vamos,
seremos felizes, teremos raízes,
folhagem nos braços erguidos ao céu,
rodaremos sombras convocando o chão.
Mundo é a metáfora que somos, a palavra transferida
para o medo, o ajuste indizível da carne no golpe,
a janela fechada com a cabeça de fora
travando o cigarro, as veias e a voz
numa tarde transposta para o silêncio, mais um dia
por habitar sob o prisma estilhaçado das artes vãs e das ciências falíveis
como o amor e o esquecimento.
não há imagens na imagem nem corpo no espelho,
tocamos nos vidros para dissimular a existência
como em todas as coisas e nos artefactos
ou uma tarde à janela para refletir a luz e transpor
o mundo, a metáfora das expectativas.
Somos reflexos, reflexivos vamos,
seremos felizes, teremos raízes,
folhagem nos braços erguidos ao céu,
rodaremos sombras convocando o chão.
Mundo é a metáfora que somos, a palavra transferida
para o medo, o ajuste indizível da carne no golpe,
a janela fechada com a cabeça de fora
travando o cigarro, as veias e a voz
numa tarde transposta para o silêncio, mais um dia
por habitar sob o prisma estilhaçado das artes vãs e das ciências falíveis
como o amor e o esquecimento.
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