segunda-feira, 30 de maio de 2011

Vou para onde cheira a bananas


Gosto de reler a aventura do pequeno urso e do pequeno tigre que um dia descobrem um caixote a boiar, ainda com cheiro a bananas e com a inscrição PANAMÁ. “-O caixote vem do Panamá e o Panamá cheira a bananas. Oh, o Panamá é a terra dos meus sonhos – disse o ursinho.” Por isso decidem partir logo no dia seguinte à procura do Panamá. “-Sempre que uma pessoa não sabe o caminho – disse o ursinho –, precisa primeiro de uma placa a indicar o caminho. Por isso fez uma placa a indicar o caminho.” Estacaram a placa e partiram nessa mesma direcção. Na viagem desorientada, repleta de encontros com novos amigos a quem iam pedindo indicações, conseguiram descobrir o Panamá, devidamente identificado: tinham ido parar à casa de partida – nem mais!
A história releva primeiro a viagem, o ir, o encontro, e a seguir o reencontro, um regresso transformado, consciente de si e do mundo.
Gosto de reler este livro ilustrado e de pensar que é por um reencontro que ponho todos os dias os pés de fora da cama e que vou para onde cheira a bananas.
Agora vou dormir porque a semana ainda agora começou e amanhã tenho muito Panamá para fazer...

domingo, 29 de maio de 2011

Éfeso



"Paulo não conheceu Cristo, mas considera-se tão apóstolo como os doze. Invoca uma autoridade que lhe advém da revelação na estrada de Damasco e da missão a que foi então destinado. Decide por isso levar a Igreja muito além da Palestina. É um viajante incansável e tenaz: Antioquia, Galácia, Filipos, Tessalónica, Colossos, Corinto, Éfeso, provavelmente a Península Ibérica. Figura carismática, causa grande impressão nessas cidades. Só em Atenas fracassa, porque os sofisticados gregos acham ridículo que se diga que alguém «ressuscitou»."
De "Paulo", in "As Vidas dos Outros" (Pedro Mexia, Tinta-da-China, 2010).

Fotografias: Éfeso, no teatro onde, entre outras bizarrias, andou São Paulo a apregoar um deus invisível. 14.05.2011
Desfile - parte 1. Antalya, Maio 2011.


Desfile, parte 2. Antalya, Maio 2011
 Feirantes. Antalya, 18.05.2011


Estacionamento. Antalya, 18.05.2011

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Café turco

“De todas as bebidas pagãs que me passaram pelo estreito, o café turco foi a pior. Vem numa chávena pequena, polvilhada de grãos, e o café é preto, espesso, de cheiro desagradável e péssimo sabor. O fundo da chávena apresenta um sedimento pastoso de meia polegada. Quando nos desce pela garganta, uma parte desta lama fica pelo caminho, produzindo uma irritação que nos faz ladrar e tossir durante uma hora.”

*
“Um esqueleto cor de cobre, com um trapo à cintura, trouxe-me um frasco de vidro com água, com um cachimbo normal por cima e uma cana flexível com cerca de uma jarda de comprimento e um bocal de latão na ponta.
Era o famoso «narguilé» oriental: aquilo que o Grande Turco fuma nas gravuras. Isto já começava a parecer um luxo. Dei uma baforada e bastou; o fumo desceu-me com uma forte pressão até ao estômago, os pulmões e às partes mais recônditas do meu organismo. Explodi numa tosse estrondosa, como uma erupção do Vesúvio. Nos cinco minutos que se seguiram, fumei por todos os poros, como uma casa em construção a arder lá dentro. Acabou-se o narguilé para mim. O fumo sabia mal, e o sabor das mil línguas de infiéis agarrado ao bocal de latão era ainda pior. Estava a ficar desanimado. De agora em diante, sempre que vir o Grande Turco de pernas cruzadas a fumar narguilé, com um ar de imenso êxtase, num embrulho de tabaco de Connecticut, já sei que ele é um charlatão sem vergonha.”

A Viagem dos Inocentes. Mark Twain, Tinta-da-China, 2010.
Foto: Discoteca Aura, Antalya. 16.05.2011

Santa Sofia em dez minutos e um par de meias

“A Mesquita de Santa Sofia não me pareceu nada de especial. Devo ser eu que tenho mau gosto. Seja. É o celeiro mais vetusto do mundo pagão. Julgo que todo o seu interesse reside no facto de ter sido concebida como um templo cristão e depois transformada numa mesquita, sem grandes alterações, pelos conquistadores muçulmanos. Fizeram-me descalçar as botas e entrar lá de meias. Apanhei uma constipação, e prendeu-se-me às meias uma tal série de porcarias e coisas peganhentas e gordurosas, que gastei mais de duas mil calçadeiras para conseguir tirar as botas nessa noite, e mesmo assim acabei por descascar algum couro cristão. Não exagero numa única calçadeira.
Santa Sofia é um colosso de uma igreja, com trezentos ou quatrocentos anos, e suficientemente feia para ser muito mais velha. Diz-se que a sua imensa cúpula é mais maravilhosa do que a da Catedral de São Pedro, mas a sua sujidade é muito mais prodigiosa do que a sua cúpula, embora nunca falem dela. A igreja tem cento e setenta pilares, cada um deles feito numa única peça, todas elas de mármores dispendiosos de várias qualidades – mas vieram de templos antigos de Baalbek, Heliópolis, Atenas e Éfeso, e são umas ruínas completas, feias e repugnantes. Já tinham mil anos quando esta igreja era nova e, nessa altura, deviam produzir um contraste horrível – se é que os arquitectos de Justiniano não lhes limparam a cara. No interior, a todo o diâmetro da abóbada lê-se uma inscrição em caracteres turcos, trabalhada em mosaicos dourados, que parece tão espampanante como um letreiro de circo; os pavimentos e as balaustradas de mármore estão num estado lastimável e sujo; por toda a parte, a perspectiva é toldada por uma teia de cordas suspensas das alturas vertiginosas da cúpula, de onde se penduram inúmeras lamparinas de óleo corroídas e miseráveis, e ovos de avestruzes, a seis ou sete pés do chão. Turcos esfarrapados agachavam-se e sentavam-se por toda a parte a ler livros, a ouvir sermões, ou a receber lições como gaiatos, e havia outros tantos em mais de cinquenta sítios a curvar-se e a endireitar-se, e a curvar-se novamente, e a prostrar-se aos beijos no solo, sempre a murmurar preces, e a fazer esta ginástica até ficarem certamente muito cansados.
Por todo o lado, grassava a sujidade e o pó e o desmazelo e a escuridão; por todo o lado, havia sinais de uma antiguidade ancestral, mas sem nada de emocionante ou de belo; por todo o lado, os mesmos grupos de grandessíssimos pagãos; por cima, os mosaicos variegados e a teia de cordas dos candelabros; e em parte nenhuma, nem uma só coisa que nos conquistasse a afeição ou a admiração.
As pessoas que entram em êxtase com Santa Sofia, de certeza que deve ser pelos guias de viagens (onde cada igreja vem «considerada pelos especialistas como a estrutura mais maravilhosa, sob vários aspectos, alguma vês vista»). Ou então são aqueles velhos coca-bichinhos dos confins da Nova Jérsia que se aplicam denodadamente a aprender a diferença entre um fresco e uma boca de incêndio, e a partir daí já se acham no direito de expressar a sua emoção crítica sobre todas as pinturas, esculturas ou estruturas arquitectónicas que lhes aparecem à frente.”



 
A Viagem dos Inocentes. Mark Twain, Quetzal, 2011.
Fotos: Mesquita de Santa Sofia. 17.05.2011.


Turcas


 
“[…] depois há esquadrões de mulheres turcas que pairam por toda a parte em silêncio, cobertas da cabeça aos pés de túnicas esvoaçantes, e véus de neve em volta das cabeças, revelando apenas os olhos, e uma noção muito vaga e difusa das suas feições. Quando as vemos deslocarem-se ao longe nas arcadas sombrias do Grande Bazar têm o mesmo aspecto que deviam ter os cadáveres amortalhados quando emergiram das campas entre os coriscos e os trovões e os terramotos que rebentaram no Calvário naquela noite terrível da Crucificação. Uma rua de Constantinopla é um cenário que basta ver uma vez.”

A Viagem dos Inocentes. Mark Twain (Tinta-da-China, 2010).

Fotos: Istambul, à entrada do Grande Bazar. 17.05.2011. Na foto da direita, a mulher esconde o rosto ao aproximar-se da câmara fotográfica.

Fotos: Mesquita Azul. 17.05.2011


Fotos: Mesquita Azul. 17.05.2011

Turkey

“«Perus. Na Turquia!», exclamei. «Pergunto a mim mesmo se é por isso que se chamam…»
Mas não é. Estas aves receberam o seu nome da pintada-comum africana que, importada através de Istambul, se chamava galo-da-Turquia.”

in O Grande Bazar Ferroviário, Paul Theroux (Quetzal, 2011).

O pai dos Turcos


“Foi no caminho para Üsküdar que tive a percepção do que até aí me aborrecia na Turquia. O pai dos Turcos, que é o que o seu apelido significa, foi Mustafá Kemal Atatürk, e, seja onde for que se vá na Turquia, vêem-se fotografias, retratos e estátuas dele; está em cartazes, em selos, em moedas – sempre o mesmo perfil contraído de banqueiro. O seu nome é dado a ruas e praças e entra em quase todas as conversas que se têm no país. O rosto tornou-se emblemático, em forma de estrela amolecida, com as sugestões de um nariz e um queixo, e é omnipresente como o carácter simplificado que os chineses usam para espantar diabos. Atatürk chegou ao poder em 1923, declarou a Turquia uma república, e, por via da modernização, encerrou todas as escolas religiosas, dissolveu ordens dervixes e introduziu o alfabeto latino e o código civil suíço. Morreu em 1938 e foi essa a minha percepção: a modernização parou na Turquia com a morte de Atatürk, às nove horas e cinco minutos de 10 de Novembro de 1938. Como que para demonstrar isso, o quarto em que morreu está como o deixou e todos os relógios do palácio estão nas 9h05. Isto parecia explicar a razão pela qual os Turcos se vestem tipicamente como se vestiam as pessoas em 1938, com camisolas castanhas peludas e meias com padrão de losangos, com calças largas listradas e fatos azuis de sarja com ombros enchumaçados, ostentando lapelas que parecem asas e um lenço de três pontas no bolso de lenço. O cabelo é ondulado, com brilhantina, e o bigode, encerado. […] Isto tudo leva uma pessoa à conclusão inevitável de que, se o zénite da elegância otomana foi o reinado no século XVI de Suleimão o Magnífico, a maré alta da elegância moderna foi em 1938, quando Atatürk ainda estava a moldar a moda turca com base nos tímidos modelos do Ocidente.”

in O Grande Bazar Ferroviário, Paul Theroux (Quetzal, 2011).
Ao alto, a minha fotografia da imagem do rosto de Atatürk. Tirada em 15 de Maio 2011, num miradouro de Antalya.

domingo, 22 de maio de 2011

A verdade contrafeita

À saída do Éfeso. 14.05.2011

Porta-chaves para todos os tipos de fechaduras

13.05.2011

Píndaro e o destino


"A bênção não aparecerá aos homens sem esforço, e é um
deus que a cumpre hoje, seguramente. O que está destinado
não pode ser evitado, mas o tempo, num golpe inesperado,
há-de conceder-nos algumas coisas que contrariam todas as
expectativas. Outras, porém, não ainda."

Excerto de "XII. Para Midas de Agrigento, vencedor no concurso de flauta" (490 a.C.). In Odes. Píndaro (tradução de António de Castro Caeiro, Quetzal, 2010).

Em cima, a minha fotografia (13.05.2011) da imagem de Píndaro no Museu de Afrodísias.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O intérprete

Esta semana no Babelia
http://www.elpais.com/articulo/portada/Pietro/Citati/lector/infatigable/jovial/elpepuculbab/20110507elpbabpor_36/Tes

Pietro Citati, un lector infatigable y jovial

CARLOS GARCÍA GUAL 07/05/2011

Ensayo. La luz de la noche no trata de los grandes mitos, como dice el subtítulo añadido, sino de algunos de los más espléndidos relatos de la tradición literaria universal, desde los antiguos griegos a Leopardi, a través de famosos textos cristianos, orientales, árabes, hebreos, y crónicas de Indias. Pero, como Citati recuenta esas historias inmortales de tan largos ecos, podría acaso decirse que esa literatura mágica espejea y recrea fulgores míticos. Escribe acerca de dioses y héroes griegos, como Hermes y Ulises, glosa el amor de Cupido y Psique en la novela de Apuleyo (uno de sus autores predilectos), y evoca el retumbante Apocalipsis de San Juan, las apasionadas Confesiones de Agustín, y los intrincados relatos de China, como la gran novela El sueño del pabellón rojo, y el mágico entramado de Las mil y una noches, y episodios históricos tan trágicos como la conquista de México y de "la muerte de los dioses" (narrada por el Inca Garcilaso), y otros famosos textos y fantasías inolvidables. Ya había yo leído este libro (Seix Barral, 1997), pero he vuelto a leerlo en esta nueva y excelente traducción de Díaz de Atauri con tanto placer como años atrás. Porque en sus páginas recobramos la intensa fascinación de esas lecturas mágicas y las releemos en una prosa entusiasta y vibrante. Citati no sólo es un formidable lector, sino un gran relator que conjura los encantos de estos viajes con entusiasmo y agilidad. Sin la menor pedantería y sin lastre erudito invita a viajar por la mejor literatura, y nos contagia ese placer viajero. Invita a compartir su admiración, su alegría experta y jovial.

La luz de la noche. Los grandes mitos en la historia del mundo
Pietro Citati
Traducción de Juan Díaz de Atauri
Acantilado. Barcelona, 2011
475 páginas. 29 euros


Citati combina la agilidad narrativa del ensayista que escribe en periódicos con la mirada de un experto biógrafo
Si La luz de la noche enfoca ante todo textos fantásticos, en El mal absoluto se dedica a evocar a los autores de grandes novelas -sus biografías y rasgos personales- para así introducirnos en los laberintos imaginarios de la literatura del XIX. Siempre con cálida y sutil simpatía hacia sus personajes y sus destinos. Dibuja los escenarios con vivo colorido y analiza la psicología de sus héroes, sin eludir la reflexión filosófica, como ya insinúa el título del libro. (Apropiado sólo a ciertos capítulos). Por ejemplo, Citati relata, en ágil y emotivo resumen, Crimen y castigo y Los demonios, y luego, en contraste, lances de la vida patética de Dostoievski, y resalta su intensidad dramática, del autor y sus personajes, y en esa convergencia trágica (Raskolnikov implica en algo a Dostoievski, y viceversa) nos invita a una más vivaz comprensión de vida y textos.
Como es sabido, ciertos críticos literarios del pasado siglo postularon un enfoque de la literatura centrado en el análisis formal de los textos -sus estructuras y temas- augurando la "muerte del autor". Nada más contrario a esos formalismos que esta vivaz actitud crítica de Citati, que combina la agilidad narrativa del ensayista que escribe en periódicos con la mirada de un experto biógrafo muy atento al contexto histórico. Justo es recordar sus espléndidas biografías de novelistas modernos: Goethe, Tolstói, Proust, Katherine Mansfield y Kafka. (Sólo la de Kafka está traducida al español). En todas ellas hallamos el mismo ensamblaje vivaz de vidas y ficciones, es decir, de lo vivido y lo inventado, del mundo real y el imaginario. En ese juego se muestra la más auténtica y airosa hermenéutica literaria, la que explica cómo la literatura de verdad, la de los relatos más clásicos, enriquece nuestra sensibilidad y nuestro imaginario. Los ensayos de Citati van en esa dirección, y reiteran ese estilo fresco, amable, pictórico, entusiasta.
De modo ejemplar lo hace Ulises y la Odisea. El pensamiento iridiscente. (En italiano, La mente colorata). Admirable comentario del gran poema novelesco que es, sin duda, el más irisado y moderno de los textos míticos, con su versátil protagonista, el héroe taimado de muchas tretas, y sus múltiples y atractivas figuras secundarias. Sus lances y personajes quedan ahí retratados con seductora vivacidad que en otros libros tienen Robinson Crusoe, o los héroes de Manzoni, Dickens, Stevenson o Henry James.
Todo lector es un intérprete, pero hay lectores que por su talento narrativo y su fina y fervorosa sensibilidad -como Vargas Llosa o Claudio Magris- resultan ser guías excepcionales en nuestros viajes literarios, en la relectura de los grandes relatos. Uno de esos maestros de la lectura, infatigable y jovial, es Pietro Citati.

El mal absoluto. En el corazón de la novela del siglo XIX. Pietro Citati. Traducción de Pilar González Rodríguez. Galaxia Gutenberg. Barcelona, 2006. 528 páginas. 24,20 euros. Ulises y la Odisea. El pensamiento iridiscente. Pietro Citati. Traducción de José Luis Gil Aristu. Galaxia Gutenberg. Barcelona, 2008. 354 páginas. 35 euros.