sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Arte e Instinto. Denis Dutton (Temas e Debates, 2010)

“Tenho utilizado a arte como uma forma de alcançar as emoções da vida e a ler nesta as ideias da vida. Tenho cortado blocos com uma navalha. Tombei dos grandiosos cumes da exaltação estética para os sopés aconchegantes da afável humanidade. É uma terra simpática. Ninguém deve ter vergonha por se sentir bem aqui. Apenas quem nunca esteve nas alturas poderá sentir algum desânimo nestes plácidos vales. E, àquele que tenha encontrado a felicidade nos calorosos campos e pitorescos recantos do romance, que não lhe ocorra poder descortinar os austeros e emocionantes êxtases daqueles que escalaram cumes frios e brancos da arte.” (Dutton, citando Clive Bell).

“Por causa da selecção sexual, associamos sempre às artes uma inabalável sensação de que estas são feitas por um indivíduo para deleite de outro indivíduo.”

“Nas suas meditações sobre o kitsch no livro A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera nota a essencial autoconsciência que o kitsch promove. O objecto kitsch, como explica Kundera, clama pela «segunda lágrima». A primeira lágrima é a que nós deitamos na presença de um acontecimento trágico, deplorável ou talvez belo. A segunda lágrima é deitada depois de reconhecermos a nossa própria natureza sensível, a nossa habilidade espantosa para sentir tanta pena, para entender um tal sofrimento ou beleza. Portanto, um gosto pelo kitsch é, por isso, essencialmente autocomplacente. […] O ponto de referência definitivo para o kitsch sou sempre eu: as minhas necessidades, os meus gostos, os meus sentimentos profundos, os meus interesses relevantes, a minha moralidade admirável. […]
O kitsch não nos mostra nada genuinamente novo, não muda nada na nossa alma maravilhosa e brilhante; pelo contrário, congratula-nos por sermos, exactamente, a pessoa requintada que já somos.”

Guia de Conceitos Básicos. Nuno Júdice (Dom Quixote, 2010)

UMA REFLEXÃO SOBRE A BELEZA ETERNA,
INTERROMPIDA PELA VISÃO DO EFÉMERO

A harmonia que, para os clássicos, exprimia a relação
das partes com o todo, atravessou os milénios sem alterar
o equilíbrio do homem no centro da sua esfera. Esse
homem, com a sua representação simétrica, define-se
a partir de um universo que tem um limite
na compreensão divina da matéria
e do espírito. E poderia continuar assim, se
não ouvisse um copo a partir-se no fundo
da casa - alguém que se distraiu, e que rompeu,
de súbito, o meu raciocínio. Ao mesmo tempo,
porém, descobri que nada do que eu pensava
era original; e só ao apanhar do chão os vidros
partidos, um brilho leve no seu contacto com
a luz me fez pensar que, afinal, a harmonia
também nasce da destruição, e o centro da esfera
desloca-se para o fragmento que seguro com
os dedos, antes de o deitar para o lixo.


ESBOÇO DE UMA RELAÇÃO ENTRE O SER
E A NATUREZA

Os que vivem devagar não olham para trás,
nem sabem o que vem à sua frente. Sentam-se
na vida que apanham quando o tempo passa
por eles, e tiram-na dos ramos pesados
como se fosse o fruto que vão abrir
com o cansaço dos seus dedos.

Os que vivem devagar desenham
 os seus passos no chão para onde não olham,
quando atravessam o instante, e sabem que
o seu movimento é como o das árvores
que o vento agita, e nunca saem
do lugar onde têm a sua raiz.

Os que vivem devagar têm a pressa
da folha que cai, no outono, e flutua
com o último brilho de um viço
estival, antes de pousar onde a terra
preparou o seu leito, e aí adormecer
na doce corrupção da eternidade.

HAMLET E OFÉLIA

Não é todos os dias que hamlet apanha
o táxi para elsenor, onde ofélia o espera com uns ovos
estrelados à pressa para ele comer. No táxi,
hamlet ouve o taxista perguntar-lhe qual
o destino, e ele indeciso responde-lhe
que é o caminho mais curto para ser. Mas o taxista
não dá com ele, entre ser e não ser, e enquanto
os ovos ficam frios, hamlet pede ao taxista
que fale com o polónio, que deve saber se já há uma
auto-estrada para a dinamarca. A verdade é
que não, só se ele quiser apanhar o ferry-boat
para elsenor, onde ofélia deitou os ovos para
o lixo e espera que ele se contente com um
macdonald´s. Mas hamlet já deixou o táxi,
depois de pagar o que tinha a pagar, e atravessa
o jardim sem saber o que fazer, depois de ofélia
lhe ter ligado para o telemóvel a perguntar qual o rio
mais próximo, para fazer o que tem de fazer.

Casa da Misericórdia. Joan Margarit (Ovni, 2009)

PROZAC

A lua é o gelo no copo de sombra
que a vida me oferece. Que história
não tenta negar o seu tenebroso epílogo?
Mas o monstro sou eu, e não outro alguém
a quem, para me salvar, posso matar.
A vida é justamente este desastre.
Como extirpar a culpa das pedras?
Como deter a dor dentro de um túnel?
Como ouvir se, tão longe dentro da noite,
está a chorar a nossa filha morta?
Os antidepressivos são pesticidas.
E o final dos contos é sempre falso,
para que as crianças não se suicidem.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Albas. Sebastião Alba (Quasi, 2003)

"Do fígado, não há notícias: fiz um voto - nunca mais olhar para um jornal, um televisor ou um anúncio luminoso, mesmo que não tenha para onde olhar. Afinal, era isso que me dava cabo dele, do fígado. Mas não achas que o vinho deve ter, também, contribuído?"

*

"O meu velhote ao  ver um programa de televisão dizia-me: "Já reparaste que não sabemos lá muito bem onde pôr as mãos, desde que as levantámos do chão? Ou andamos com elas atrás das costas ou ao volante.""

*

"Houve uma época em que fui tentado a confundir a prole de intelectuais que expunha ou dissecava determinado corpo de doutrina, com o seu progenitor: via num darwinista, Darwin; num marxista, Marx, e assim por diante. Sei hoje que isso me era tão nefasto como ver, em cada uma das mulheres que amei, a mulher do meu sonho."

*

"Os homens olham para as mulheres como se as devorassem - não pensam noutra coisa. As mulheres passam de olhos abstractos - não pensam noutra coisa (ainda que não olhem para ninguém excepto umas para as outras duma maneira gélida, quase cruel). Vestem-se todos para se exibir uns diante dos outros.
A sua cosmogonia é o jornal "A bola" e a "telenovela brasileira". Se uma guerra nuclear varrer sociedades destas da face da terra, nada se perderá. A vida renasce, renova-se."

*

"Uma fome de mulher quase patética começa a devorar-me... Mas se o preço é a integração numa sociedade que me parece um certame, prefiro morrer à míngua."

*

"«Por que amas, ainda, um povo submetido e triste que nada te pode oferecer?...»
Aquele que é talvez o mais vigoroso pensador do séc. XIX viu, em Milão, um cocheiro a chicotear o cavalo. E abraçou-se ao pescoço do pobre animal protegendo-o. Era Nietzsche. Quem sou eu para não me comover?
Às vezes sinto que as pessoas vão tão infelizes que me apetece fazer-lhes uma festa, na rua, tocar-lhes no ombro. Mas se for uma mulher, diz logo: "parece que é parvo"! E, se for um homem: "ó amigo, tire a mão de cima!" Já viste a minha vida, Neide? Merda."

*

"Queridas filhas:
Não creio nos filósofos, mas cativou-me sempre a sua audácia de pensar.
É bonito, leiam-nos.
Quanto aos poetas (o pp. foi um deles) sorriam-lhes de longe.
Mas atenção aos grandes músicos, à sua estranha perfeição, à nostalgia que nos invade ao escutá-los.
Quando encontrarem um, não o deixem escapar.
Poderia pensar-se que nos trazem (os músicos) notícias de Deus.
É mais: como Deus não existe, eles têm de forjá-las."

*

"Pai:
Estou farto de Alain Prost;
dos "jovens empresários";
dos "70x7";
de Nossa Senhora de Fátima (e da do Sameiro);
da Volta a Portugal em Bicicleta;
do filósofo paraclético Agostinho da Silva e daquela reafirmada intenção do Mário Soares (aqui tenho de ser mais extenso, é o Presidente da República), já tão cansado da Magistratura como a Teresa Batista, do Jorge Amado, o estava da guerra: "queria ter tempo para escrever ainda alguns livros". Que lata!
Mas sobretudo, estou farto de si e de mim (e do Júlio Isidro; e do Carlos Cruz). Ora sabe de que é que eu nunca me fartei? Dessa página do Nietzsche:
«Será preciso demonstrar até que ponto tudo o que é consciente permanece superficial, até que ponto a acção difere da imagem da acção, como sabemos pouco daquilo que precede a acção (...); de que modo os pensamentos, as imagens, as palavras não passam de símbolos dos pensamentos (...); em que medida o elogio e a censura permanecem superficiais; como a nossa vida consciente se passa essencialmente num mundo da nossa invenção e da nossa imaginação (...) e como a coesão humana assenta sobre a transmissão destas invenções - enquanto, no fundo, a coesão verdadeira (pela reprodução) prossegue o seu caminho desconhecido.» Sabe como eu gosto de Nietzsche, (gostamos) de pensar com ele, o que não seria capaz de fazer sozinho.
Trago, desde os vinte e três anos, a ilustração tatuada, no braço esquerdo, de um aforismo dele:
«Quando se ama o abismo é preciso ter asas.»
Nunca pensei que entre a teoria e a prática (desculpe o estilo académico) houvesse um fosso intransponível: o que nós continuamos a cavar!
É admirável como certas pessoas suportam o fardo que levam sem o alijar."

Albas. Sebastião Alba (Edições Quasi, 2003)

"Arrosta com a solidão; não a trajes, não exibas. É uma palavra gasta pelo uso que lhe dão as mulheres sós, ou seja, privadas de homem, e vice-versa. Sem fala, a tua é a de alguém diante da sua morte. Pensas, ao adormecer: "Acordarei?" Os dias são povoados mas exteriores; é apenas essa exterioridade que vives e compartilhas.
Não te deixes invadir por essa ternura delicodoce, fanada, a saudade à portuguesa; endurece, ou sucumbes."

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Conception entre science et art. Regards multiples sur la conception. Jacques Perrin (Dir.), INSA, 2001

"Néanmoins, une partie de la démarche de conception ne releve pás de la science mais de l´art. […] Il n´est pás sûr que la composante artistique de la conception aille en diminuant avec la formalisation progessive de la démarche de conception rendue possible par le développement de la science de la conception. En effet, la complexité croissante dés problèmes à résoudre, la nécessaire prise en compte de l´évolution des usages, la mise en oeuvre de conceptions participatives obligent les concepteurs à développer de nouvelles pratiques qui mobilisent à la fois leur capacite de scientifique et d´homme de l´art.
[…] les artefacts sont dês médiateurs entre la pensée et le comportement. En soulignant que ces théories définissent les artefacts en y incluant les instruments, les machines, mais aussi les signes, le langage, elle nous permettent ainsi de mieux comprendre comment les processus mentaux des humains sont profondément influencés par les moyens socio-culturels qui les médiatisent.”

Jacques Perrin. La conception entre science et art

“Bertolt Brecht dans ses écrits théoriques analyse le Théâtre de l´ère scientifique en montrant qu´il doit faire passer le spectateur de l´expérience naturelle de ses automatisms perceptifs à une experience réfléchie. Le theatre rompt ainsi avec cette «image naïve de la réalité sensible» dont parlait Paul Valéry, pour proposer une conception et une representation autres du monde.
Brecht se propose donc, dans son travail et dans ses oeuvres, d´abandonner le «theatre de carrousel» pour donner à voir un «theatre de planetarium». Dans le premier cas, c´est la formule habituelle des spectacles bourgeois, le théâtre de l´expérience vécue du spectateur, qui tourne en rond, car il ne provoque que des faux changements dans la perception de notre monde. Je verse ma proper psychologie dans le personnage: c´est moi que je vois en l´autre, je n´apprends rien de neuf sur moi ni sur le monde. Dans le théâtre que Brecht veut inventer, le spectateur, comme dans un planétarium, reste à sa place mais le ciel bouge: il s´agit d´un vrai mouvement qui libère le regard critique et provoque «l´effroi nécessaire à la connaissance.» C´est aussi un théâtre de l´action et du geste qui est posé souvent comme une énigme, parce qu´il n´est pas fixé par une substance psychologique. Il vient d´un monde en mouvement, il interrompt l´action et suscite une volonté d´analyse.
Le théâtre est alors, pour le spectateur mais plus encore pour ses acteurs, un artefact au sens où le définit Simon: «interface entre un projet et un contexte».”

“Nous interrogerons la pratique théâtrale (et non le produit/spectacle pour le spectateur) comme processus de conception/creation d´une telle representation.. Nous avons, à cet égarde, à être prudents sur l´emploi du terme acteur dont l´usage se développe de manière proliférante et omniprésente dans tous les champs des sciences sociales. Est acteur au sens contemporain et francophone toute personne engagée dans une action individuelle ou interactive d´initiatives ou de décision.
Cette métaphore théâtrale nous conduit donc, sans snobisme anglophone particulier, à préférer le terme de perfomer pour les personnes réellement engagées dans une représentation sur un plateau de théâtre, comme on entend aussi performing arts pour les spectacles vivants.”

“C´est l´époque romantique, sous l´influence de l´allemand, qui va transporter le terme d´art dans le domaine de l´esthétique et distinguer l´artiste de l´artisan. Quant au terme technique il garde de son sens originel: «construire, fabriquer» la signification contemporaine de «manière précise de procéder en quelque domaine que ce soit».”

“Dans la pratique théâtrale aussi on sait bien que la «présence» d´un comédien par example, la force de l´incarnation qu´il évoque sur scène, est extrêmement difficile à definir et qu´il n´y a pás de procédures rigoureuses de formation. «Je pense qu´on doit definir la présence d´une manière extrêmement pragmatique. Qu´est-ce que la présence? C´est ce qui agit sur le spectateur. A partir de là on peut se demander s´il existe une technique qui permette à n´importe quel acteur d´agir sur les spectateurs.» [Eugenio Barba]”

“On peut rapprocher cette remarque de la définition que donnait L. Pirandello: “La vie a une forme, mais l´art est une forme» et dans le domaine de conception cette observation d´un enseignant-chercheur formant les étudiants à la conception: «Dans un premier temps les jeunes n´expriment qu´eux-mêmes, c´est-à-dire des idées banales, recues de-ci, de-là. Soit sous forme de schémas, soit sous forme de calculs: ils reproduisent les stéréotypes. C´est un des points sur lesquels on bute le plus: se dégager des stereotypes. Par contre donner une certaine forme et aller vers une structure… généraliser une expression, à ce moment-là ça deviant réellement une culture.» [D. Play]”

“Le performer est donc en quelque sorte un oxymora [figure de style qui rassemble deux contraires], où coexistent artificialité et vitalité, où le corps est à la fois chair à vif et hiéroglyphe. Il est dans l´action et il produit des images. C´est bien du spectateur de donner un sens à ce qu´il voit, entend, ressent.“

“L´une des définitions de la conception, du moins en termes de résolution de problèmes suggère que: «concevoir, c´est accomplir une réduction progressive d´un espace de recherche initialement très large: un moyen efficace de réduire cet espace est alors de formuler, de propager et de satisfaire les contraintes liées au problème» [Perrin, 2001].“
“Un artefact est-il inventé avant d´être constitué en objet technologique ou est-il inventé parce qu´on (un groupe social) le constitue comme tel? Un ouvrage récent (Bijker) propose un réponse radicale: c´est le fruit de la nécessaire rencontre d´un cadre technologique propice, d´un inventeur et d´un groupe social approprié.“

“En effet on a pu considerer que lorsque la finalité se distingue de l´objet, apparaît l´activité de conception; qui est d´abord un processus d´abstraction; puis on revient vers un concret: l´artifice à construire. Le caractère essentiel de l´artifice est qu´il vient après l´idée (c´est la métaphore de l´abeille et de l´architecte): «Ce qui distingue dès abord le plus mauvais des architectes de l´abeille la plus experte, c´est qu´il a construit la cellule dans sa tête avant de la construire dans la ruche.» (K. Marx, souvent cité par Le Moigne).
D´où un problème pour l´oeuvre artistique, qui est plus dans le sensible que dans le conceptual (sauf recherches formelles) et l´«art conceptuel». Cependant au théâtre on pourrait apporter un correctif: il y a déjà un texte (le plus souvent) préalable c´est-à-dire un faisceau de sens, un universe en quelque sorte déjà conceptualisé.”

“Clément Rosset (1995) quant à lui, montre que tous les artefacts «manifestent une non-nécessité qu´on peut appeller artífice ou hasard». Ils seront les résultats réussis de projets, d´intentions, d´expériences, impensables a priori. «Il suffit de concevoir le hasard comme générateur d´innombrables tentatives, et l´existence comme le résultat de certaines de ces tentatives.»
D´où l´audacieuse équation: ÊTRE = HASARD + SUCCÈS.”

“Dans les sociétés contemporaines en crise, on aperçoit que le modèle du travail, présenté uniquement comme transformation des choses et non des personnes, touche ses limites. On voit aussi que l´innovation technologique n´entraîne pas forcément le progrès économique qui à son tour n´est pas le vecteur assure d´un mieux-être social, politique, mental ou moral. On en verrait à l´heure actuelle plutôt des contreexemples nombreux et dramatiques. Peut-être faut-il alors chercher ailleurs un développement qui ne se confondrait pas avec la croissance cumulative des objets.
Chez nos étudiants, la pratique du théâtre entraîne des processus de transformation réciproque d´expérience en connaissance, des métamorphoses personnelles parfois spectaculaires. Elle leur apprend un rapport à une oeuvre, à une entreprise commune et partagée, à travers laquelle la transformation des choses ou des données n´a de sens qu´en s´accompagnant de la transformation de soi-même.
Ce sont, au sens propre, des prises de conscience.”


Françoise Odin. “Des ingénieurs sur un plateau“.

domingo, 28 de novembro de 2010

os meninos de ouro 6

"Segundo o portal Agência Financeira, em 2006, Cavaco Silva tinha três reformas: 2679 euros do Banco de Portugal, 5007 euros da Caixa Geral de Aposentações, pelo desempenho de funções de professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade Nova, e 2876 referente à subvenção vitalícia pelo exercício do cargo de primeiro-ministro (esta pensão não é acumulável com as funções de Presidente da República). Em 6 de Junho de 2010, a Presidência da República, através de uma nota informativa, vem confirmar que Cavaco Silva "recebe duas pensões de reforma em resultado, exclusivamente, dos descontos que, ao longo da sua vida profissional, efectuou para a Caixa Geral de Aposentações, como professor, e para o Fundo de Pensões do Banco de Portugal, como funcionário do Banco."

A subvenção mensal vitalícia foi consagrada na Lei nº4/85, de 9 de Abril (alterada pela Leio nº26/95), que estabeleceu o estatuto remuneratório dos titulares de cargos políticos. Esta situação permite que antigos políticos acumulem a subvenção mensal vitalícia com outra pensão de reforma a que têm direito após o exercício de uma actividade profissional. Na prática recebem duas pensões por mês. A subvenção mensal vitalícia foi extinta pelo primeiro governo de José Sócrates (Lei nº52-A/2005, de 10 de Outubro), mas não tem efeitos retroactivos."

João Pedro Martins. Revelações. Smartbook, 2010.

os meninos de ouro 5

"Em 19 de Janeiro de 2009, o deputado Melchior Moreira renuncia ao Parlamento para presidir à Entidade Regional do Turismo do Porto e Norte de Portugal, pedindo a atribuição da subvenção vitalícia, com apenas 45 anos de idade. Confrontado com a situação, o antigo deputado, eleito pelo Partido Social Democrata, responde convictamente: "Não me incomoda de maneira nenhuma, é um direito que tenho e que me assiste em função do tempo que dediquei à causa pública. Tenho cerca de 11 anos de trabalho de causa pública e só me consideraram 9 anos. Estou perfeitamente de consciência tranquila, porque houve empenhamento pessoal e acompanhamento político."

João Pedro Martins. Revelações. Smartbook, 2010.

os meninos de ouro 4

"Desde 2006 que o ex-deputado Manuel Alegre é contemplado com uma pensão mensal de 3219 euros que inclui o período de desempenho de funções durante algumas semanas na Rádio Difusão Portuguesa. Questionado por um jornalista do Correio da Manhã sobre o facto de ter direito a uma pensão por ter trabalhado tão pouco tempo, o antigo vice-presidente da Assembleia da República é peremptório: "Eu recebo aquilo a que tenho direito. Recebo a pensão como funcionário da RDP e recebo a subvenção vitalícia, que é aquilo a que qualquer deputado tem direito. Tudo somado, agora recebo menos 500 euros do que recebia quando tinha um terço da pensão (como prevê a lei quando o pensionista exerce cargos públicos) e mais o salário de deputado". Em declarações ao mesmo jornal, Manuel Alegre salienta que a subvenção vitalícia "é legal" e recorda o exemplo de outros políticos que auferem pensões além de outros rendimentos: "O Presidente da República também não recebe duas ou três reformas do Estado, além do vencimento? Mas eu nem questiono que ele é uma pessoa séria.""

João Pedro Martins. Revelações. Smartbook, 2010.

os meninos de ouro 3

"Segundo os dados da Caixa Geral de Aposentações (CGA), o número de actuais e ex-titulares de cargos políticos que usufruem de uma subvenção mensal vitalícia não pára de aumentar, atingindo os 400 beneficiários em Maio de 2010. Numa época em que Portugal enfrenta uma das piores crises económicas dos últimos 30 anos, é ultrajante ver políticos a acumular pensões e subsídios de reintegração com o exercício simultâneo de outras actividades profissionais. No lote dos contemplados com este privilégio político encontram-se o antigo primeiro-ministro, Pedro Santana Lopes, e o candidato às presidenciais, Manuel Alegre, que pediram à Assembleia da República a atribuição da subvenção vitalícia e assim acumulam duas reformas em simultâneo. Pedro Santana Lopes recebe, desde Outubro de 2005, uma pensão mensal de 3178 euros por ter sido presidente de Câmara, juntando agora os mais de 2 mil euros da subvenção vitalícia da Assembleia da República."

João Pedro Martins. Revelações. Smartbook, 2010.

os meninos de ouro 2

"Os 3,1 milhões de euros auferidos em 2009 por António Mexia, CEO da EDP e antigo ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações do governo de Santana Lopes, mostra como um administrador de uma empresa que detém o monopólio do comércio doméstico de electricidade, e que por isso está dispensada da competição do mercado, ganha mais do que Steve Jobs, fundador da Apple, a gigante americana de computadores. O valor que Mexia guarda no bolso é um escândalo, comparado com o salário médio de um trabalhador português e com metade dos habitantes do planeta que vivem com menos de 2 dólares por dia."

João Pedro Martins, Revelações - os paraísos fiscais, a injustiça dos sistemas de tributação e o mundo dos pobres. Smartbook, 2010.

Achei-te!

Joaquim Manuel Magalhães refere-se aqui à publicação "Ruínas", que se apresentou como o «primeiro volume da série "Elogios" publicado pelos Quatro Elementos Editores. 1990». Jaime Rocha abre o capítulo "Lápis de Cor" (páginas 129 a 131) com:

"RUÍNAS
              é um espaço de morte
onde vai um corvo comer to-
das as manhãs. Poisa junto
ao amontoado de pedras e pro-
cura no meio da vegetação al-
gumas larvas e o cheiro de ou-
tros corvos. É um cheiro novo,
azeitado, que consegue sur-
preender quem pára um carro
junto a uma montanha. Nessas
ruínas passa um rio que está
sujo e que mostra ao longo das
margens mais de duzentos peixes
mortos. É um rio esverdeado sem
vegetação, apenas com uma baba,
onde os corvos vão beber. Tem
sons que desaparecem de repen-
te. Dentro dessas ruínas exis-
tem vários objectos de ferro,
outros de plástico. Tudo está
ordenado conforme o seu tempo
de uso e o espaço que ocupam.
[...]"

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Conception entre science et art. Regards multiples sur la conception. Jacques Perrin

"La conception-création-invention nécessite la coexistence de cinq facteurs:
» L´existence des «identités», des sujets, des «Je» - pour jouer avec les mots -, des savoirs, des disciplines, etc.
» L´existence de différences, d´altérités, voire d´altération, de crise, d´incomplétude, de manques, de désirs... Dont l´Autre est le «signifiant majeur».
» L´existence d´aires de jeux», des idées, des objets, des pensées, des disciplines, des cultures, etc., en lesquelles peut s´opérer la «rencontre» des «uns» et des «autres».
» L´existence d´un «espace» assurant les conditions favorables à l´accueil, à l´élaboration, ao mûrissement, ao déploiement et au développement du «germe» et ainsi à la «réalisation» de l´oeuvre et éventuellement à son orientation soumise à la conscience intentionnelle et réflexive. Cet espace d´accueil suppose aussi dialectiquement des frontières, des structures, des règles et des lois à la fois internes à l´art et externes, conduisant au dépassement paradoxal dans l´oeuvre véritable de la tension entre la liberté de la création et l´existence d´un cadre et de structures qui renvoient au cinquième point.
» L´existence d´un «Monde»* dans lequel l´oeuvre va être produite et produire des effets dans une «dialectique complexe» qui n´est jamais totalement prévisible, c´est la phase extensive de l´oeuvre.

* Le «Monde», selon notre conception, préexiste aussi bien implicitement, en relation avec l´histoire des acteurs, des lieux, des modèles, mais aussi presque toujours explicitement par l´intermédiaire de contraintes ne serait-ce que celles imposées par l´apprentissage de «l´art ou de la science», du langage et des codes, de commandes, de désirs mimétiques... Pour le dire autrement, aucun acte créatif ne peut-être considéré comme entièrement libre et nous sommes là au coeur d´un paradoxe souvent repéré de l´acte créatif conjoignant la plus grande liberté et les plus fortes contraintes. Mais dialectiquement cette forme de préexistence est potentielle et appelle à être actualisée et réalisée, ainsi le monde est aussi inventé, construit, révélé, et c´est dans cet espace paradoxal du «trouvé-créé» qu´intervient le plus radicalement l´acte créatif."

*

"L´Art conduit à une attitude que nous pourrions qualifier d´activement passive, où le spectateur singulier est appelé à être «co-auteur» dans la compréhension ou la contemplation de ce que l´oeuvre lui «donne à voir», et où il réalise alors «souvent sur un mode mineur» un processus semblable à celui de la création originale, il pourra d´ailleurs s´en inspirer dans un acte de création continuée.
Dans le champ proliférant des techniques les rapports à «l´objet inventé» s´organisent autrement dans leurs effets concrets s´articulant avec une logique complexe, économique, sociale et politique, déplaçant le centre de gravité de «l´objet» vers une entité collective. Il s´avère que ces innovations techniques prennent alors une place dans le monde plus «médiatement» active, mais le plus souvent passivement active, devenant des objets de consommation ou des outils aux effets non réfléchis et aux principes non compris en profondeur."

*

"Ainsi nous voudrions ouvrir le «champ» de la conception (et de la création) au questionnement du sens et de la conscience - en particulier l´étique -, comme une sixième phase d´un processus que n´envisageait pas initialement Anzieu. Nous savons que cette «précaution» pourrait paraître superfétatoire voire inhibante vis-à-vis du processus créatif, elle nous aparaît au contraire comme cruciale aujourd´hui."

En Alain Gire. Conception de la conception.

As palavras transferidas. X - O processo de aquarização

Entre a mão e o vidro, as palavras transferidas.
Eu tenho um peixe no aquário que se esquece
de mim a cada volta.
Reconhece a fonte de alimento, a minha mão
como qualquer outra,
e eu ando às voltas à volta do aquário
de volta de um peixe que,
bem, como outro qualquer peixe,
talvez seja sempre demasiado novo
para poder preservar o amor que lhe persigo
enquanto não volta a mão que me alimenta.

sábado, 20 de novembro de 2010

Carta ao Futuro. Vergílio Ferreira (Quetzal, 2010)

"Estamos instalados na vida como se nós próprios não existíssemos, como se fôssemos o próprio mundo que existe, a própria realidade que é, a sua presença absoluta de estar sendo. E a simples reflexão de que é o mundo que depende de nós, de que a sua maravilha está suspensa, para nós, do nosso olhar, dá-nos vertigens. Que admira que uma pequena invenção técnica nos perturbe, nos abra a velha interrogação? Eis que depois de abarcarmos a terra, de a colocarmos na mão como a pequena bola de um deus poderoso, depois de nos confrontarmos nas nossas raças, nos nossos sonhos milenariamente solitários, depois de esgotarmos a nossa procura mútua, eis que acabamos de rasgar os espaços até lá de onde a nossa imaginação descobre o vazio que nos circunda, descobre, num arrepio, o nosso pobre globo perdido na poeirada dos astros, recorda, com uma nova evidência, a infinitude das distâncias que o unem ao universo. E uma vez mais a velha angústia de um Lucrécio, de um Pascal, em face da eternidade da noite, nos desvaira de aflição. Possivelmente, meu amigo, quando esta carta te chegar às mãos, se chegar, estarás tu já instalado em indiferença no meio de quanta nova invenção que não sabemos nem imaginamos."

*

"A arte é o estatuto da plenitude da nossa identificação. Portanto, se ao pé de ti se pasmar e perguntar como pudemos nós conferir tamanha dignidade a mármores partidos, papéis rabiscados, manchas de tinta, tu saberás reconhecer que o que a nós se impôs foi sobretudo a fascinação de ver, de tornar presente para nós as fronteiras do mundo que habitamos, foi o sonho desse dom da revelação, da descoberta maravilhosa de uma verdade de origens, a verdade que era nossa, com a qual nós tínhamos uma entrevista marcada e à qual não desejámos faltar. Tu saberás dizer que o que nos fascinou foi o realizarmos, em presença total, a vida que nos coube, foi estarmos presentes ao universo, adentro da dimensão que era nossa, a de uma profunda humanidade, a da evidência, do milagre. Tu saberás responder que a arte não foi para nós um valor em si, como obra - a não ser para aqueles de nós que foram mais ambiciosos ou distraídos; mas que foi, sim, a dimensão única que nos restou, de outros sonhos destruídos, para nos vermos adentro do milagre humanizado, do mistério terreno, da evidência imediata que o sobressalto ilumina; que a arte não foi um valor de redenção, senão enquanto foi um valor de posse esclarecida, de identificação, de comunhão assumida.
Só assim se entenderá o que tu próprio talvez julgarás degradação da mesma arte, na arte que nos coube. Porque ela se nos despedaça na raiva com que a amamos, com que amamos a vida. Como a um pobre filho que nos nasceu aleijado mas nem por isso cabe menos no nosso amor. Pobre amor desgraçado, com olhos nublados olhamos a esse filho, o contemplamos desde a amargura que nos endurece o coração. Tu explicarás que a nossa arte degradada é a imagem da vida que o destino nos traçou, a forma dolorosa de lhe reinventarmos a imagem obscurecida na distracção quotidiana. Os destroços que dela encontrares um dia e que possivelmente rejeitarás, foram o nosso modo de nos reencontrarmos connosco, de nos assumirmos desde as ruínas de um mundo que se desmorona, de nos revermos na total e iluminada imagem do que somos e não queremos rejeitar como nada rejeitamos da nossa verdade original. Assim a plenitude que nela descobrimos foi acima de tudo a plenitude de saber, da revelação. Porque o saber pela evidência, pela comoção de raízes, é a exaltação do que em nós é mais que nós, do que em nós é o próprio fulgor da vida, é a sua própria chama. A grandeza da arte, o que faz dela um valor, no meio da derrocada de tanta velha esperança, não vem apenas do acto que afirma o nosso poder e a nossa liberdade - vem ainda ou sobretudo da figuração da vida no que nela é mais profundo e portanto na figuração da beleza que doura e envolve toda a aparição."

a rua deserta

"[...] Mas a vida está cheia do seu dom original e só espera de nós um pouco de atenção - ou não bem de atenção, não bem de atenção: um pouco de humildade, de uma íntima nudez. Eu o reconheço de novo, a esse dom, nesta hora de chuva em que escrevo. Na rua deserta, ouço-a cair, expulsar da cidade os robôs da ilusão, a grandes brados de um vento sideral. [...] Eu os vejo agora, passando desorientados pela rua abandonada, fugindo, espavoridos, à invasão do silêncio."

in Carta ao Futuro. Vergílio Ferreira (Quetzal, 2010).

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Estranhas criaturas. Henrique Manuel Bento Fialho (Deriva, 2010).

"SEREIA
Nem com cera nos ouvidos, nem de olhos vendados, nem de cabeça enfiada na areia, nem assobiando para o lado, nem olhando por cima do ombro, nem ficando, nem partindo, nem com os ossos todos quebrados, nem engessado num coma profundo, nem perto, nem longe, nem aqui, nem agora, nem nunca, nem sempre o canto das sereias me atrai como me trai o silêncio de quem nelas não compreende a mais básica condição: nascemos para colidir contra a morte, somos um mero acidente.
E só por mero acaso não descendemos de musas enfunadas, de deuses arrependidos, só por mero acaso não somos o canto atraente de quem mais que correr não pode simplesmente andar, de quem mais que sonhar não pode simplesmente adormecer, só por mero acaso somos homens e só por sermos homens somos um dano dificilmente reparável."

domingo, 14 de novembro de 2010

Conception entre science et art. Regards multiples sur la conception. Jacques Perrin

"Au désenchantement du monde succède un enchantement des choses."

"Dans la période des temps modernes, l´homme marque le monde de son empreinte et le place dans la perspective de sa raison: mathématisation du monde, géométrisation de l´univers, développement de la technique et de la science, problématisation du réel. L´activité de conception devient l´instrument de cette mise en perspective humaine et rationnelle des choses. Nous entrons alors dans l´époque des conceptions du monde: le monde est ce qui peut être représenté et pensé."

"La conception n´est pas un acte intellectuel libre ou arbitraire. Elle s´intègre dans une culture qui institue un rapport rédéfini de l´homme au monde tout comme dans un jeu de connaissances et de contraintes techniques. La conception est une façon d´entrer en système avec le monde pensé lui-même comme système. L´activité de conception est finalement un jeu de reflets où l´imagination et la pensée techniques croisent une représentation du monde, où l´objet croise le monde jusqu`à le supplanter en un infini et pur jeu d´illusions, source d´un baroque contemporain que nous éprouvons jusqu´au vertige."

In Michel Faucheux. De l´époque des conceptions du monde à l´époque des conceptions techniques.

Conception entre science et art. Regards multiples sur la conception. Jacques Perrin

"[...] le problème n´existe pas in extenso, il est le résultat d´un processus de recherche."

"Nous retrouvons ici en lui apportant des éléments d´explication la situation décrite par Galland: «de plus en plus de débats et de problématiques tant dans les milieux de la recherche que dans les milieux professionnels et dans le débat public, s´expriment autour de la notion de risque. Mais d´autre part, et en dehors de certains domaines d´activités bien circonscrits ou la culture de risque est traditionnellement très forte, les notions et les outils issus de l`analyse du risque tardent encore à devenir de véritables outils de gestion et d´aide à la décision.»"

"La notion d´efficience est utilisée par la suite et se différencie de celle d´efficacité. Si l´efficacité mesure la capacité à mobiliser des ressources pour atteindre un objectif donné, la notion d´efficience renvoie quant à elle au moyen terme, où les ressources et les objectifs peuvent être amenés à évoluer (Ruffier, 1996). Il s´agit de l´inscription de l´efficacité dans la durée."

"La recherche d´efficience ne doit pas pour autant faire négliger l´importance de la recherche d´efficacité (qui est quelque part à la base des conditions d´émergence des systèmes d´aide à la décision). Toutefois les solutions ou les options retenues sous conditions d´efficacité ne doivent pas porter des irréversibilités qui seraient en contradiction avec le souhait d´efficience. C´est bien cette voie médiane qu´il faut rechercher inscrivant l´efficacité (ou les formes acceptables comme telles) dans une recherche d´efficience.
La question est de savoir «fermer» intelligemment un context «ouvert» c´est-à-dire en connaissance de causes et de conséquences. L´apprentissage d´un part, la pluridisciplinarité d´autre part, en sont les vecteurs."

In Marcel Miramond, Pascal Le Gauffre, Thierry Prost. Systèmes d´aide à la décision et conception de problèmes en génie urbain.

Conception entre science et art. Regards multiples sur la conception. Jacques Perrin (dir.; Presses polytechniques et universitaires romandes, 2001).

"Dénommer nécessite donc de s´interroger sur la relation terme concept."

"Selon Sapir, notre mode de pensée est avant tout linguistique. Le monde qui nous entoure n´existe que par la langue commune à un group d´individus. Sapir (1929) avance que «les mondes dans lesquels vivent différentes sociétés sont des mondes distincts et non pas un seul et même mond étiqueté différemment». La portée d´une telle affirmation était à l´époque principalement socioculturelle. Nous ne pouvons cependant la dissocier totalement de l´évolution des techniques et de la terminologie des langues de spécialité. L´idée d´un déterminisme linguistique a souvent être associée à celle d´un relativisme linguistique. En 1956, Benjamin Lee Whorf avançait: «le monde se présent comme un flux kaléidoscopique d´impressions que notre esprit doit organiser - ce qui implique principalement les systèmes linguistiques dont nous disposons.» La perception que nous avons du monde serait donc altérée par la langue que nous utilisons."

"C´est par, et grâce à sa forme linguistique que le concept vit. Le processus de dénomination entretient un paradoxe, celui d´être en partie arbitraire et en partie motivé. Si, comme on l´affirme parfois, de façon volontairement prococante, certes réductrice mais néanmoins empreinte d´une certaine vérité, concevoir consiste à classifier puis à unifier, alors la terminologie témoigne même partiellement de cette démarche. Il semble cependant que l´expression linguistique ne se contente pas d´accompagner la démarche de conception. Elle semble être en mesure, comme nous venons de le voir, si ce n´est de le déterminer au moins de l´influencer."

In Richalot, Jérôme. "Terminologie et conception application au domaine de la piézoeléctricité".

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

"Eleonora". In Todos os Contos 2 (Edgar Allan Poe, Círculo de Leitores / Quetzal, 2010)

Neste conto encontrei a minha livre interpretação para o enigma daqui.

“Ela vira que o dedo da morte estava sobre o seu seio; que, tal como a flor efémera, a perfeição da beleza apenas lhe fora concedida para morrer, mas os terrores da sepultura, para ela, residiam tão-somente numa reflexão que me revelou uma tarde, ao crepúsculo, nas margens do Rio do Silêncio. Sofria ao pensar que eu, depois de tê-la sepultado no vale da Relva Multicor, deixaria para sempre os seus aprazíveis recônditos, transferindo o amor que tão apaixonadamente lhe dedicara para alguma donzela do mundo quotidiano exterior. E, nesse mesmo momento, rojei-me precipitadamente aos pés de Eleonora e fiz a jura, a ela e aos céus, de que nunca me ligaria pelos laços do matrimónio a qualquer filha da Terra, de que não seria de modo algum infiel à sua grata recordação, nem à lembrança do devotado afecto com que ela me abençoara.
[…]
Encontrei-me numa cidade estranha, onde todas as coisas poderiam contribuir para apagar a recordação dos doces sonhos que durante tanto tempo albergara no vale da Relva Multicor. A pompa e o aparato de uma corte majestosa, aliados ao desvairado clangor das armas e à radiosa beleza das mulheres, confundiram e inebriaram-me o cérebro. Mas até então a minha alma mostrara-se fiel à jura, os sinais da presença de Eleonora eram-me ainda concedidos nas horas silentes da noite.”

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Introdução à Semiótica. Adriano Duarte Rodrigues

"[...] todos os fenómenos que o homem percepciona, concebe, comunica e interpreta têm na linguagem o seu ponto de partida e o seu ponto de chegada.
As manifestações semióticas não linguísticas só adquirem significação pelo facto de serem ou de poderem ser manifestadas verbalmente. O homem só entende as significações do mundo que o envolve pelo facto de saber que, mesmo quando as não explicita verbalmente, o poderá fazer sempre que queira. É por isso que aquilo que não sabemos dizer não existe realmente para nós, não integra o nosso mundo humano. Mas, por outro lado, a linguagem já está à partida de toda a nossa actividade semiótica, como herança que recebemos e que preside à organização da nossa percepção do mundo e ao sentido que ele tem para nós."

*

"Acima do limiar superior do campo semiótico, situa-se uma vasta esfera que Ferdinand de Saussure considerava «nebulosa», espécie de magma mental informe. Louis Hjelmslev deu-lhe o nome de «matéria». Em si mesmo, independentemente da sua formação sígnica, este campo é indizível, inomeável. Pertencem a este campo supra-semiótico as chamadas concepções do mundo, domínio que os alemães costumam designar como Weltanschauumgen. É o domínio por excelência do mítico e do ideológico. Mas nele são compreendidos igualmente os aspectos funcionais ou utilitários das obras culturais."

*

"Toda e qualquer acção humana é assim sempre significante, expressiva. Um automóvel significa inevitavelmente, para além das suas funções utilitárias de deslocação, os valores sociais de que está investido: prestígio, standing, desportivismo, juventude, feminilidade. É precisamente por este motivo que a publicidade pode jogar estrategicamente com a imbricação destas diversas dimensões dos objectos culturais para produzir sempre novos valores significantes."

*

"«Imagine que acordo numa manhã antes da minha mulher e que quando ela acorda me pergunta: "Que tempo está hoje?" Isto (esta pergunta) é um signo cujo objecto imediato (o objecto tal como ele é expresso) é o tempo que está neste momento mas o seu objecto dinâmico é a expressão que devo ter tido ao olhar através das cortinas da janela; e o seu interpretante imediato (ou o interpretante tal como ele é expresso por este signo) é a qualidade do tempo, mas a sua interpretação é a minha resposta à pergunta. Mas, além disto, há um terceiro interpretante. O interpretante imediato é aquilo que esta pergunta exprime, tudo aquilo que ela exprime imediatamente. O interpretante dinâmico é o efeito real que esta pergunta surte em mim, que sou o seu intérprete. Mas o sentido derradeiro, ou interpretante final, último, é aquilo que a minha mulher tinha em vista, ou aquilo que era a sua intenção, ao fazer-me esta pergunta, qual seria o efeito que a minha resposta teria tido para os seus projectos acerca desse dia.»"

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Introdução à Semiótica. Adriano Duarte Rodrigues (Edições Cosmos, 2ª edição, 2000).

"A semiótica destina-se, por conseguinte, a fornecer os utensílios que permitam ao olhar descobrir o sentido que as coisas apresentam e que o hábito oculta. A disciplina semiótica é, deste ponto de vista, um constante e sistemático exercício de percepção originária dos fenómenos, considerando-os como se eles continuassem a irromper ou acontecessem, pela primeira vez, no horizonte da nossa experiência do mundo.
A semiótica pretende, por conseguinte, ser uma fenomenologia, um projecto de retorno às próprias coisas, com vista ao desvendamento, a um trabalho de rememoração, à reminiscência do sentido que o tempo foi ocultando e esquecendo. O lugar comum, as falsas evidências, a naturalização são as modalidades desta ocultação e deste esquecimento do sentido originário que compete à semiótica questionar. Os signos que, em vez de revelarem a plenitude do sentido, o ocultam e obliteram são apenas aparências enganadoras ou simulacros que «traem», no duplo sentido do termo, a realidade para que remetem.
Não é por acaso que, no sentido originário, as acepções de traição e de tradição se confundiam num mesmo termo. Em latim, é o mesmo verbo, tradere, que significa ao mesmo tempo «trair» e «entregar». Podemos compreender a razão desta assimilação, se pensarmos no que queremos dizer quando afirmamos que, ao corar, alguém trai os seus sentimentos. O rubor do rosto, ao mesmo tempo que deixa escondida a veemência do sentimento, dá-o a ver completamente, entrega-o, sem reserva, à percepção dos outros. É neste sentido que a semiótica tende a desalojar o sentido ocultado pela prática semiótica habitual, a desvendar a realidade que os simulacros traem."

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Sobre "O corvo" de Edgar Allan Poe

"Aqui, portanto, posso dizer que o meu poema encontrara o seu começo - pelo fim, como deveriam começar todas as obras de arte, porque foi então, exactamente neste ponto das minhas considerações preparatórias, que, pela primeira vez, pousei a pena no papel para compor a estância seguinte:

- Profeta - disse eu -, ente de desgraça! No entanto profeta, pássaro ou demónio!
Pela abóboda celeste que nos cobre as cabeças... pelo Deus que ambos adoramos!
Diz a esta alma cheia de tormento se no Paraíso
Lhe será permitido estreitar a si a santa jovem que, entre os Anjos, se chama Lenora,
Estreitar a si a única e radiosa jovem que, entre os Anjos, se chama Lenora?
O corbeau disse: - Nunca mais."

in A Filosofia da Composição, Edgar Allan Poe (em análise à génese do poema O corvo). Tradução de Fernando Pessoa (O corvo e outros poemas, Ulmeiro, 4ª edição, 1999).

Nesta análise, Poe apenas não explicita por que excluiu o nome da adorada na versão final do poema, permitindo-nos assim interpretações livres, ora técnicas, ora psicanalíticas.

Avaliações do professor

1985 (aos 6 anos de idade)
"Comportamento - Bom. Parece menos desconfiado e mais sociável. Não cria problemas de disciplina. É sossegado e atento nas aulas.
Interesse pela actividade escolar - Mostra interesse por todas as actividades que realiza sem grandes dificuldades, mas por vezes com falta de ponderação.
Aproveitamento escolar - Tem feito progresso e o seu aproveitamento é bom e satisfaz.
Apreciação global - Bom aluno que promete um bom rendimento escolar se for mais cuidadoso e calmo na execução dos trabalhos."

1986
"Comportamento - Bom. Está interessado pela aprendizagem, é alegre, sente-se bem na escola, é sociável e não cria problemas de disciplina. É desinibido e colabora com todos tornando-se bastante simpático.
Interesse pela actividade escolar - Mostra interesse por todas as actividades que realiza sem grandes dificuldades. Gosta de aprender e é entusiasta pelo ensino.
Aproveitamento escolar - Bom. Continua progredindo e consegue tirar bom proveito do que aprende. Vai adquirindo uma boa bagagem de conhecimentos em todas as áreas do programa.
Apreciação global - Bom aluno com boas capacidades de trabalho. É aplicado, persistente e interessado pelos assuntos da escola."

1987
"Comportamento - O seu comportamento é aceitável, embora goste muito de conversar na sala de aula.
Interesse pela actividade escolar - É muito interessado e aplicado nos trabalhos que faz.
Apreciação global - Como até aqui, deve continuar a a ser estudioso e aplicado e não deixará de ser o bom aluno que é. Deve no entanto tentar corrigir a caligrafia."

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O Cinema em Palavras (Poemas-Piloto). Rolf Dieter Brinkmann (Fenda, 1995)

Todos os poemas são poemas-piloto

Todos
os poemas
são públicos
*
isto
é
já um
poema
para Rygulla
*
e
tal como
pintamos
de repente um
armário de amarelo

também
aquilo
a que
chamamos
um
armário amarelo

é já
um poema
para Maleen, que o observa
com atenção
*
e quando depois escrevemos um poema assim
isso
é
um poema
assim
e não pertence
a ninguém
*
isto
é outro
poema
para mim próprio.
*
O piloto está publicamente ao dispor de todos e isto
é
outra vez um
poema assim
desta vez para Helmut Pieper. E continuo a dizer
em geral
*
entra

e fecha a
porta
também tu és um piloto
no
FIM.

***
“É, todavia, no cinema que [Rolf Dieter] Brinkmann encontra o último e mais importante objecto do seu trabalho com a estrutura e com o modo de funcionamento da «indústria das consciências». Não tanto devido à trivialidade de códigos destes seus mitos ou à pujança das suas estrelas, como, talvez, à rapidez da sua assimilação pela massa dos consumidores, submetendo a experiência do real à da máquina de sonhos. Além disso, o cinema é também uma técnica. Uma técnica que permitirá a Brinkmann alargar e fazer agir as suas imagens. Se a fotografia ampliada já não pretendia qualquer tipo de clarificação (que, de resto, nunca é clara), mas apenas revelar composições estruturais novas, o cinema, enquanto conjugação de diversos planos (real e ficção, técnica e imaginação), funciona segundo um mecanismo análogo à percepção humana, na medida em que não reproduz a realidade, mas a constitui. Uma poesia que procura deste modo a radicalização das fantasias pessoais, estrutura-se sob a forma de «cinema em palavras».”

Judite Berkemeier e João Barrento, in Posfácio.

sábado, 30 de outubro de 2010

Crisis? What Crisis?



Capa do disco "Crisis? What Crisis?" (Supertramp, 1975).

"Pensar filosoficamente pode revelar que a nossa satisfação com os factos da vida provém mais de uma habilidade de ignorar o que se passa à nossa volta do que uma efectiva alegria de viver." (Charles Feitosa, in Explicando a Filosofia com Arte.)

"A sabedoria dos animais". In Explicando a Filosofia com Arte (Charles Feitosa, Ediouro, Rio de Janeiro, 2004).

"(...) "Observa um rebanho, que pasta diante de ti. Ele nada sabe sobre o ontem ou o hoje, ele corre daqui para ali, come, descansa, digere, corre novamente, e assim de manhã até à noite, dia após dia, amarrado através de seu prazer e de sua dor à estaca do instante, e por isso mesmo nunca melancólico ou deprimido" (Segunda Consideração Intempestiva [1784]. Segundo Nietzsche, o homem observa o comportamento do animal e fica com inveja, pois também gostaria de não ficar triste. Pergunta então: "por que você só fica aí me olhando e não me fala da sua felicidade? O animal quer responder e dizer: isso vem do facto de que eu sempre esqueço o que queria dizer - mas ele já esquece também essa resposta e se cala. O homem fica admirado de seu siêncio" (ibid).
O olhar oblíquo de Nietzsche sobre o rebanho no pasto faz com que também vejamos tudo de forma insólita e surpreendente. O animal, que é sem passado e sem futuro, parece viver mais intensamente que o homem, oprimido pelo excesso de memória e de "pré-ocupações". Para ser feliz e fazer os outros felizes será preciso recuperar um pouco da sabedoria dos animais ou das crianças: a sabedoria do esquecimento."

sábado, 9 de outubro de 2010

As palavras transferidas. VIII – Uma teoria da abstração e do abstrato

Entre cerco e clausura, as palavras transferidas.
Todas as palavras são apelo à comiseração,
como o cerco e a clausura que estas palavras configuram e significam.
Das palavras nascem palavras-coisas e para estas imagens se transferem.
Palavras de palavras.
Situamos a palavra, que é cerco e clausura, numa reclusão externa –
esta coisa de silêncio, imagem de um grito mudo complacente.
À doença de esperar dá-se o nome de silêncio.
Fechados nele, abreviamos e resolvemos as imagens:
a porta escancarada,
luz intermitente entre cortinas, o corpo
cansado numa cama a suspender-se para o tempo, o vazio habitável
no cerco do dia, de cada jornada de esquecimento,
de palavras que nos fecham nas imagens,
na clausura das notícias – palavras de palavras de palavras.
Ganhar a jorna é esta consciência de vazio entre as imagens,
desta prisão que nos abstrai,
a projeção sequencial de luzes na tela escura
e de nelas dissolvermos a sombra que não somos.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O livro abandonado

Eu, uma vez corri a outra nova aventura. Foi em Raimundo, uma das terras mais ricas do país. Vivia eu num apartamento, quando ouvi um barulho estranho. Parecia alguém a chorar. Fui ver. Que estranho, sabem o que eu ouvi? Um livro a chorar. Nunca tal me tinha acontecido ver isto, mas vou contar como foi: - O que vem a ser isto? - perguntava eu - um livro a chorar?!
- Sim! Um livro a chorar! - dizia e chorava o livro.
- E a falar? É de desmaiar! Agora vamos ao que interessa: porque é que choras?
- É que ninguém me quer ler, dizem sempre: este livro não presta! Este livro é muito grande para ler! Assim eu sou abandonado.
- Pois agora vou-te perguntar: os livros todos que eu li não falavam nem choravam e porque é que tu choras?
- É que eu venho do mundo dos livros e fabricaram-me mesmo de propósito para que alguém me lesse e se alguém me ler irá para o meu mundo!
- Mas porque é que quem te ler tem de ir para o teu mundo?
- No nosso mundo, os livros estão a acabar e precisamos de poetas para escreverem mais livros! Porque sem poetas não há livros e será uma grande tristeza se não houver livros!
- E porque é que será uma grande tristeza se não houver livros?
- Olha, olha, os livros, nós, ensinam tudo ao homem e se não houver livros os homens não saberão nada!
- Lá nisso tens razão, eu sou um poeta! Vou-te abrir se tu me prometeres que me levas de volta ao mundo do Homem!
- Prometo!
- Combinado, então vou abrir-te!
E eu abri o livro e fui ter ao Mundo dos livros.
Assim na vida nunca mais faltaram livros.


Maceirinha, 24 de Março de 1988 (9 anos de idade)

domingo, 26 de setembro de 2010

"Diotima de Mantineia". In "A Metáfora do Coração e outros escritos".

“E assim fui ficando à margem. Abandonada pela palavra, chorando interminavelmente como se do mar subisse o pranto, sem mais sinal de vida que o pulsar do coração e o palpitar do tempo nas minhas têmporas, na indestrutível noite da vida. Noite eu própria.”

"Notas". In "A Metáfora do Coração e outros escritos".

“As coisas estão na poesia pela sua ausência, isto é, pelo mais verdadeiro, já que, quando algo se ausentou, o mais verdadeiro é o que nos deixa, pois que é o inapagável; a sua pura essência. E a própria realidade encobre-se a si mesma. Além disto, com este jogo de ausência e de presença, as coisas aparecem-nos submersas no fluxo do tempo; mostram-se-nos como nascendo e voltando a nascer. A sua presença é um milagre, o milagre, primeiro do aparecimento das coisas em estatus nasces.”

“Valéry definiu a poesia, e, ao defini-la, fê-la o que ela nunca fora: problemática. Assemelhou-a ao pensamento. E até é possível já um «método» poético, um caminho para a captação da essência, que é unitária como toda a essência, e há-de deixar-se captar por aproximação.
Mas, isso é a poesia? A poesia não se deu na dispersão? A sua unidade não foi diferente da do pensamento e até agora era indefinível? Só o facto de a poesia se situar paralelamente ao pensamento faz pensar que deixou de ser fiel a si mesma, precisamente ao pretender sê-lo. A poesia não pode estabelecer-se a si mesma, não pode definir-se a si mesma. Não pode, em suma, pretender encontrar-se, porque então perde-se.”

"Poesia". In "A Metáfora do Coração e outros escritos".

“Filosofia é cada um encontrar-se a si mesmo, cada um chegar por fim a possuir-se; alcançar atravessando o tempo, correndo com o pensamento mais que o tempo, adiantando-se à sua corrida. […] Pois o filósofo quer sair da corrente do tempo, da procissão dos seres.”

“E do seu pensar sai o seu ser”.

“E assim, o filósofo parte soltando-se das suas origens em busca do seu ser; o poeta continua quieto à espera da dádiva, e quanto mais tempo passa menos pode decidir-se a partir, e quanto mais demora a chegar a oferta sonhada mais começa a voltar-se para a origem: desfaz-se, desvive, reintegra-se quanto pode na névoa de onde saíra, na névoa originária […].”

“Não porque ao poeta não lhe importasse a unidade, mas sempre soube que nunca a conseguiria a não ser saindo de si, entregando-se, esquecendo-se. […] Só no amor, na absoluta entrega, sem que fique nada para si, vive o poeta, enfim. A poesia é um abrir-se do ser para dentro e para fora, ao mesmo tempo. É um ouvir no silêncio e um ver na escuridão. […] É a saída de si, um possuir-se por ter-se esquecido; um esquecimento por ter ganho a renúncia total. Um possuir-se por não ter já nada que dar; um sair de si enamorado, uma entrega ao que não se sabe ainda, nem se deixa ver. Um encontrar-se inteiro por se ter dado inteiramente.”

“A poesia é anedótica porque quer tudo ao mesmo tempo: o método filosófico dá-se no tempo sucessivo ou, pelo menos, propõe-no.”

“A palavra que quer fixar o inexprimível porque não se resigna a que cada ser seja somente aquilo que parece.”

"Mística e Poesia". In "A Metáfora do Coração e outros escritos" (María Zambrano, Assírio e Alvim).

“Por natureza entendemos a maneira de ser de uma coisa que o é por si mesma, isto é, que o seu ser não está feito pelas mãos do homem. E a natureza do homem – a razão – é algo que o homem não acaba de ter, mas que tem de retomar, de reconquistar.
Esta reconquista começa com a separação do meio estranho em que caiu, começa com a catharsis das paixões, produtos da sua ligação com o corpo-túmulo. Depois aparecerá o caminho da dialéctica que a razão, já sozinha e recolhida em si mesma, percorre, até à ideia do bem, que é o divino, do qual a alma humana é syngenes, parente.”

“Porque o amor leva consigo uma distância. Amor sem distância não seria amor, porque não teria unidade, objecto. É a sua diferença essencial com o desejo: no desejo não há propriamente objecto, porque o apetecido não está em si mesmo, não se lhe tolera este ensimesmar-se […] O desejo consome o que toca; na posse aniquila-se o desejado, que não tem independência, que não existe fora do desejo. Em amor subsiste sempre o objecto que tem a sua unidade inalcançável. A posse amorosa é um problema metafísico e, como tal, sem solução. Necessita de suportar a morte para se cumprir; atravessar a vida, a multiplicidade do tempo.
O amor, tal como o conhecimento, necessita da morte para o seu cumprimento. O amor pelo qual se propaga a vida… Este é, cremos, o fundamento de toda a mística: que o amor que nasce na carne (todo o amor «primeiro» - primário – é carnal) tem, para gozar-se, de desprender-se da vida, tem também que converter-se; como dizia Platão, era preciso realizar com o conhecimento.
E esta conversão verificou-se pela poesia, na poesia. Na poesia, que soube melhor que a filosofia interpretar a sua própria condenação, pois estava-lhe reservado nutrir-se até da sua própria sentença condenatória. Com mais força que o pensamento soube, até agora, arrancar a sua virtude da sua fraqueza; a sua existência de sua contradição, do seu pecado original.”

"Poesia e ética". In "A Metáfora do Coração e outros escritos" (María Zambrano, Assírio e Alvim).

“O homem aparece assim como uma criatura feliz, cuja única desventura consiste em ter de esperar e, na espera, desvelar-se e desvelar o que está encoberto, atravessando o tempo.”

“E o delírio. A razão não é senão renúncia, ou talvez a impotência da vida. Viver é delirar. O que não é embriaguez nem delírio é preocupação. E para quê a preocupação por nada, se tudo há-de terminar? O filósofo concebe a vida como um contínuo alerta, como um perpétuo vigiar e preocupar-se. O filósofo nunca dorme, afasta de si todo o canto acariciador que poderia adormecê-lo, toda a sedução, para se manter lúcido e acordado. O filósofo vive em sua consciência, e a consciência não é senão cuidado e preocupação.”

“Como convencer o amante da irrealidade do fantasma da beleza amada? Da sua morte não é preciso convencê-lo, porque ele já a chora; mas que algo morra não quer dizer que seja, por isso, irreal.”

“E este não se conformar perante o desaparecimento inexorável da beleza traz para a vida uma fatal consequência: a destruição, a ameaça perpétua de toda a ordem que se estabeleça. Destruição da ordem, porque é destruição da unidade.”

“Por isso a poesia mantém a memória das nossas desgraças. E ainda mais, faz-nos simpatizar com aquilo que a nós mesmos proibimos, com tudo o que atirámos da nossa alma para fora, com as paixões de cuja tirania nos tinha libertado a razão.”

“O poeta não pode ver com bons olhos o descobrimento do ser, porque o poeta sabe que há descobrimentos que arrastam, que existem coisas às quais não resta mais remédio que ser leal até à morte, uma vez que as descobrimos. […] Porque não existiu jamais uma mera contemplação; quanto mais pura é a contemplação, mais peremptória, mais decisiva. Contempla-se para ser e não por outra coisa, por mais empapada de amor que esteja a contemplação. Mas isto, que contemplação esteja empapada de amor, pertence à poesia.”



“E se algo o poeta ganhou através dos séculos, é esta lucidez, esta consciência desperta, cada vez mais desperta e lúcida […]. Esta ética poética não é mais que a do martírio.”

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

As palavras transferidas. VII - A perceção da espera

Entre o salto e a fenda, as palavras transferidas.
Prendemos a vista na ronda do homem-estátua:
cercamos-lhe os gestos, o piscar de olhos,
e é por nosso alívio que deixamos moeda,
para que a estátua suspire, renasça,
para que se mova e se anule numa saudação constrangedora.
Incitamos à falha, ao estremecimento,
devir da matéria.
Somos complacentes de falhas sísmicas e de meteoros,
classificamos os fenómenos por níveis de espanto.
Os dias são o que fica da nossa entrega e aceitação,
os trocos do movimento pelo movimento
na ronda do homem-estátua, ir e vir entre as fendas da perceção
enquanto nos fixamos de marmóreos vincos e de pétreas órbitas,
aguardamos que as placas se desloquem, inventando a espera
e, em vez de saltarmos,
merecemos, imóveis, a moeda no balde.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

"Dois fragmentos sobre o amor." In A Metáfora do Coração e outros escritos

“No ilimitado espaço que, na aparência, a mente de hoje abre a toda a realidade, o amor tropeça com barreiras infinitas. E tem de justificar-se e dar razões sem fim, e tem de resignar-se finalmente a ser confundido com a multidão de sentimentos, ou dos instintos, se não quer esse lugar escuro da «libido», ou ser tratado como uma doença secreta, de que deveríamos libertar-nos.”

“Vida na negação, é a que se vive na ausência do amor. Quando o amor – inspiração, sopro divino no homem – se retira, não parece perder-se nada de momento, e até parecem emergir com mais força e claridade coisas como os direitos do homem emancipado. Todas as energias que integravam o amor ficam soltas a vaguear por sua conta. Como sempre que se produz uma desintegração, há uma repentina liberdade, em verdade pseudo-liberdade, que depressa se esgota.
A partir do Romantismo, em que o amor ascendeu arrebatadamente à superfície da vida, o amor não deixo de ter os seus servidores, os seus defensores. São sobretudo os poetas, lembrando um pouco a situação antiga, quando somente os poetas o sustentaram à margem da cidade e quase da lei. Contudo, hoje ninguém ousa formular, nem sequer como hipótese, nenhuma lei contra ele; nenhuma cidade lhe fecha as suas portas; pelo contrário, tudo parece que lhe está aberto, até as leis… Mas, na realidade, as portas estão francas para os seus sucedâneos, para tudo o que o suplante. A rebeldia dos poetas, seus irredutíveis servidores, cai numa espécie de vazio; aos seus delírios não se opõe nenhuma resistência, a forma mais clara da pseudo-liberdade de que gozamos.
E é que todas as forças contrárias ao que outrora respondera ao nome de «humanismo», tomaram hoje o seu rosto, a sua figura, o seu próprio nome. O humanismo de hoje costuma ser a exaltação de uma certa ideia do homem que nem sequer se apresenta como ideia, mas como simples realidade: a realidade do homem, sem mais que renúncia à sua ilimitação; a sua aceitação de si mesmo como estrita realidade psicológico-biológica; a sua afirmação em coisa, uma coisa que tem determinadas necessidades justificadas e justificáveis. De novo o homem se acorrentou à necessidade, mais agora por decisão própria e em nome da liberdade. Renunciou ao amor em proveito do exercício de uma função orgânica; trocou as suas paixões por complexos.”

“Ao amor de nada lhe serve aparecer sob a forma de uma paixão arrebatadora; é como se, cuidadosamente, alguém tivesse efectuado uma análise e extraísse o divino e avassalador que nele existe para o deixar transformado num acontecimento, no exercício de um direito humano e nada mais. Num episódio da necessidade e da justiça.
O amor, quando não é aceite, converte-se em némesis, em justiça, é implacável necessidade de que não há escape. Como a mulher nunca adorada se converte em Parca que corta a vida dos homens. E assim, é a retirada do divino sob a forma do amor humano que nos mantém condenados, encerrados nesta prisão de fatalidade histórica, de uma história convertida em pesadelo do eterno retorno.
A ausência do amor não consiste em que efectivamente não apareça em episódios, em paixões, mas no seu confinamento nesses estreitos limites da paixão individual desacreditada num facto, num raro acontecer. E então chega a suceder que até a paixão individual – pessoal – fica também confinada numa forma trágica, porque fica submetida à justiça. O amor vive e respira, mas submetido a um processo perante uma justiça que é implacável fatalidade. O amor está a ser julgado por uma consciência onde não há lugar para ele, perante uma razão que se lhe negou. Está como enterrado vivo, vivente, mas sem força criadora.”

terça-feira, 14 de setembro de 2010

"Poema e Sistema". In "A Metáfora do Coração e outros escritos", Maria Zambrano.

“Não é necessário insistir sobre quão e delicado havia de ser o estudo que tornasse manifesta a unidade da poesia com a filosofia na forma sistemática, e muito mais se se tratasse de descobrir as suas conexões históricas e as afinidades com velhas formas de saber esquecidas.
Porém, há algo que nos aparece de modo evidente, e é que Poesia e Filosofia, olhadas nos seus mais puros exemplos, se unem, separando-se das restantes criações da palavra; há entre elas uma íntima, essencial e viva unidade. Unidade que é identidade, uma especial identidade entre a pessoa vivente com a sua criação. O filósofo e o poeta estão mais identificados com a sua obra que qualquer outro autor. Parecem até ter conseguido mais que nenhum outro esse anseio de dar à diversidade das horas vividas, à multiplicidade da vida real, um equivalente unitário; conseguiram uma transmutação ou metamorfose em que a alma se uniu ao espírito ou ao intelecto, quer porque ela o absorve – na poesia –, quer porque a inteligência recebeu dentro de si a alma. As duas são a fusão de disparidades antagónicas; as duas, apaziguamento em que os mais secretos anseios se acalmam e a vida encontra o seu espelho adequado.”

"Apontamentos sobre o tempo e a poesia". In "A Metáfora do Coração e outros escritos", Maria Zambrano.

“A arte parece ser o desejo veemente de decifrar ou procurar a pegada deixada por uma forma perdida de existência. Testemunho de que o homem gozou alguma vez de uma vida diferente. Mas nesta procura as artes da palavra parecem encerrar a clave mais que as plásticas, sempre mais deste mundo, mais adaptadas à realidade que se nos oferece. A razão não é difícil de encontrar; as artes plásticas têm menos que ver com o tempo; a sua aparência, de imediato, é espacial e não sucessiva; o seu gozo não é, ao mesmo tempo, uma realização.
E na vida humana o decisivo é o tempo. Mais, o tempo em que vivemos parece ser já o produto de um rompimento. Daí o irresistível anseio, nascido da nostalgia desse tempo perdido, que se em alguma arte se reflecte é na poesia, pois ela parece procurar a sua possível ressurreição, dentro deste tempo em decadência.”

“A palavra voltar-se-á para o que parece ser o seu contrário e mesmo inimigo: o silêncio. Quererá unir-se a ele, em vez de o destruir. É «música calada», «solidão sonora», bodas da palavra com o silêncio. Mas, ao retroceder até ao silêncio, teve que penetrar no interior do ritmo; absorver, em suma, tudo o que a palavra na sua forma lógica parece ter deixado atrás. Porque somente ao ser, ao mesmo tempo, pensamento, imagem, ritmo e silêncio parece que a palavra pode recuperar a sua inocência perdida, e ser então pura acção, palavra criadora.”

"Porque se escreve". In "A Metáfora do Coração e outros escritos", Maria Zambrano.

“Escrever é defender a solidão em que se está; é uma acção que brota somente de um isolamento afectivo, mas de um isolamento comunicável, em que, exactamente, pela distância de todas as coisas concretas, se torna possível um descobrimento de relações entre elas.
Mas é uma solidão que necessita de ser defendida, que é o mesmo que necessitar de justificação. O escritor defende a sua solidão, mostrando o que nela e unicamente nela, encontra.
Se há um falar -, porquê o escrever? Mas o imediato, o que brota da nossa espontaneidade, é algo pelo qual inteiramente não nos fazemos responsáveis, porque não brota da totalidade íntegra da nossa pessoa; é uma reacção sempre urgente, premente.”

“Escreve-se para reconquistar a derrota sofrida sempre que falámos longamente.
E a vitória somente pode dar-se ali onde se sofreu a derrota, nas mesmas palavras. Estas mesmas palavras terão agora, no escrever, uma função diferente; não estarão ao serviço do momento opressor; já não servirão para nos justificar perante o ataque do momentâneo, mas, partindo do centro do nosso ser em recolhimento, irão defender-nos perante a totalidade dos momentos, perante a totalidade das circunstâncias, perante a vida na sua integridade.
Há no escrever um reter as palavras, como no falar há um soltá-las, um desprender-se delas, que pode ser um ir desprendendo-se elas de nós. Ao escrever-se, retêm-se as palavras, tornam-se de quem as escreve, sujeitas a um ritmo, seladas pelo domínio humano de quem assim as maneja.”

“Toda a vitória humana há-de ser reconciliação, reencontro de uma amizade perdida, reafirmação depois de um desastre em que o homem foi a vítima; vitória em que não poderia existir humilhação do contrário, porque já não seria vitória, isto é, glória para o homem.”

“E assim, o escritor busca a glória, a glória de uma reconciliação com as palavras, tiranas anteriores do seu poder de comunicação. Vitória de um poder de comunicar. Porque não só exerce o escritor um direito exigido pela sua torturante necessidade, mas um poder, capacidade de comunicação, que acrescente a sua humanidade, que leva a humanidade do homem a limites recém-descobertos, a limites da sua qualidade de homem, do ser homem com o inumano, aos quais acode o escritor, vencendo no seu glorioso encontro de reconciliação com as tantas vezes traidoras palavras. Salvar as palavras da sua falsa pompa, da sua vacuidade, endurecendo-as, forjando-as, perduravelmente, é o que é procurado, mesmo sem o saber, por quem deveras escreve.”

“Porque há um escrever falando, o que escreve «como se falasse»; e já este «como se» é para desconfiar, pois a razão de ser algo tem de ser razão de ser isto e somente isto. E o fazer uma coisa «como se» fosse outra, diminui-a e mina todo o seu sentido, e proíbe a sua necessidade.
Escrever vem a ser o contrário de falar; fala-se por necessidade momentânea imediata e, ao falar, fazemo-nos prisioneiros do que pronunciámos, enquanto que no escrever se acha libertação e perdurabilidade – só se encontra libertação quando aportamos a algo permanente. Salvar as pessoas da sua momentaneidade, de seu ser transitório, e conduzi-las em nossa reconciliação rumo ao perdurável, é o ofício de quem escreve.”

“O que se publica é para alguma coisa, para que alguém, um ou muitos, ao sabê-lo, vivam sabendo-o, para que vivam de outro modo depois de o ter sabido; para libertar alguém do cárcere da mentira, ou das névoas do tédio, que é a mentira vital.”

“Nesta solidão sedenta, a verdade ainda oculta aparece, e é ela, ela mesma a que se exige ser tornada evidente. Quem progressivamente a foi vendo, não a conhece se não a escreve, e escreve-a para que os outros a conheçam. É que, com rigor, se ela se mostra a ele, não é a ele, enquanto indivíduo determinado, mas enquanto indivíduo do mesmo género dos que devem conhecê-la; e mostra-se a ele, aproveitando a sua ânsia e solidão, o seu fazer calar a gritaria das paixões. Mas não é a ele que ela se mostra propriamente, pois se o escritor conhece à medida que escreve, e escreve já para comunicar aos outros o segredo achado, a quem em verdade se mostra é a esta comunicação, comunidade espiritual do escritor com o seu público.
E esta comunicação do oculto, que se faz a todos por intermédio do escritor, é a glória, a glória que é a manifestação da verdade escondida até ao presente, que dilatará os instantes transfigurando as vidas. É a gloria que o escritor espera mesmo sem o dizer e que consegue, quando, escutando na sua solidão sedenta com confiança, sabe transcrever fielmente o segredo descoberto. Glória da qual é sujeito recipiendário depois do activo martírio de perseguir, capturar e reter as palavras para as ajustar à verdade. Por esta busca heróica desce a glória sobre a cabeça do escritor, reflecte-se sobre ela. Mas a glória é, em rigor, de todos; manifesta-se na comunidade espiritual do escritor com o seu público e ultrapassa-a.
Comunidade de escritor e público que, contra o que primeiramente se crê, não se forma depois de o público ter lido a obra publicada, mas antes, no próprio acto de o escritor escrever a sua obra. É então, ao tornar-se patente o segredo, que se cria esta comunidade do escritor com o seu público. O público existe antes de a obra ter sido ou não lida, existe desde o começo da obra, coexiste com ela e com o escritor enquanto tal. E somente chegarão a ter público, na realidade, aquelas obras que já o tiveram desde um princípio. E assim o escritor não precisa de fazer para si próprio questão da existência desse público, dado que existe com ele desde que começou a escrever. E isso é a sua glória, que sempre chega respondendo a quem não a buscou nem desejou, embora a manifeste e espere para transformar com ela a multiplicidade do tempo, passado, perdido, por um só instante, único, compacto e eterno.”

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

"Rumo a um saber sobre a alma". ("A metáfora do coração e outros escritos", Maria Zambrano, Assírio e Alvim, 2000).

“«Tudo passa» seria o grande consolo quietista, se nós não passássemos igualmente, se com o tempo que passa não passasse também a nossa própria vida. Agarrando-nos à verdade, à nossa verdade, associando-nos ao seu descobrimento por a ter acolhido no nosso interior, por ter harmonizado a nossa vida com ela, enraizando-a no nosso ser, sentimos que o nosso tempo não passa, pelo menos, em vão. Algo do seu passar fica, como no fluir da água no rio, que passa e fica. «Tudo passa», corre a água do rio mas o álveo e o próprio rio permanecem. Mas é preciso que haja álveo, e o álveo da vida é a verdade. […] E é um bem que a vida se nos precipite a correr, a fuga do simples permanecer físico a cair nos seios do tempo, a angústia de passar transforma-se em prazer de caminhante.”

“Há duas maneiras de reagir perante os pensamentos que são bocados ou parte de outro pensamento mais radical, ainda desconhecido; uma é permanecer insensível perante a verdade que eles assinalam; outra, dar conta, por uma sensibilidade nascida da necessidade que temos dessa verdade, de que está ali, e não poder, contudo, encontrá-la. É o conhecimento que dá a sede para nos agarrarmos à rocha sob a qual mana a água, sem poder desfazê-la para que saia à superfície.”

“Quantos saberes, resultado de uma vida de luta com as paixões, terão ficado no silêncio por falta de horizontes racionais onde acolher-se, por falta de coordenadas adequadas a que referir-se!”

“É um banho cósmico, uma imersão da alma com a vida. «As situações de máxima exaltação corporal trazem consigo um delicioso aniquilamento na unidade cósmica.» (Ortega y Gasset: Vitalidad, Alma, Espíritu.) A orgia é uma reconciliação da alma que sofre ao começar a sentir-se a si mesma, com a natureza; é uma chamada aos poderes cósmicos que o homem faz quando lhe doem as entranhas da sua vida. É um regresso às fontes originárias da vitalidade para se limpar das sombras do seu interior, de algo que começa a sentir como seu, aposento de silêncio e solidão.
Porque toda a solidão foi sentida num princípio como um pecado, como algo do qual se sente remorsos. Cada distância que o homem conquista em relação ao resto do universo cria-lhe uma solidão que ao princípio lhe infunde terror e remorso. E da solidão recém-conquistada, retrocede a abraçar-se com o que acaba de deixar.
Assim, a alma grega, quando começava a sentir-se separada do cosmos, socorre-se das celebrações de Elêusis e do culto a Dioniso, em busca de uma reconciliação, com a esperança de se livrar das suas dores; também com a alegria de quem se reencontra com as suas origens. Orgia, purificação, abandono por um momento das dores da solidão nascente.”

domingo, 22 de agosto de 2010

"A metáfora do coração (fragmento)." ("A metáfora do coração e outros escritos." Maria Zambrano, Assírio e Alvim, 2000)

“(…) a Filosofia mais pura desenvolveu-se no espaço traçado por uma metáfora, a da visão e da luz inteligível.”

“(…) E estas metáforas a que nos referimos não são os felizes achados da poesia ou da literatura, mas uma dessas revelações que estão na base de uma cultura, e que a representam. Maneira de apresentação de uma realidade que não pode fazê-lo de modo directo; presença do que não pode exprimir-se directamente, nem alcançar com o inefável, única forma em que certas realidades podem tornar-se visíveis aos torpes olhos humanos.

“[Metáfora] É a função de definir uma realidade inabarcável pela razão, mas propícia a ser captada de outro modo. E é também a sobrevivência de algo anterior ao pensamento, pegada num tempo sagrado, e, portanto, uma forma de continuidade com tempos e mentalidades passadas, coisa tão necessária numa cultura racionalista. E a verdade é que, nos seus momentos de maior esplendor, a Razão nada teve que temer perante estas metáforas a que podemos chamar fundamentais. Ou talvez, ao dizer cultura, tenhamos a imagem de uma unidade entre a mais pura razão e esses outros modos de conhecimento, entre os quais se destaca este das metáforas.”

“A razão é pura manifestação, é a própria comunicação. Pode ficar sem dizer, não por isso será menos comunicável. Um pensamento racional, uma Filosofia esotérica, é pura contradição. A Filosofia logo no seu começo foi a ruptura do Mistério. Assim parece sempre para os que são inclinados a um saber misterioso, saber superficial. E a própria Filosofia adquiriu consciência da sua superficialidade, que não é diferente da sua universalidade e da sua principal virtude: a da transparência. Mas o que primeiro sentimos na vida do coração é a sua condição de escura cavidade, de recinto hermético: Víscera; entranha. O coração é o símbolo e representação máxima de todas as entranhas da vida, a entranha onde todas encontram a sua unidade definitiva e a sua nobreza. […] Este abrir-se é a sua maior nobreza, a acção mais heróica e inesperada de uma entranha que parece de imediato não ser senão vibração, um sentir puramente passivo. Signo de generosidade porque indica que aquilo que primariamente é somente passividade – acusação – se transforma em activo. E é tão passivo que não deixa de o ser ao actuar, é o oferecimento daquilo que não tem outra coisa senão integridade. Suprema acção de algo que, sem deixar de ser interioridade, a oferece num gesto que parece que poderia anulá-la, mas somente a eleva. Oferece-se por ser interioridade e para continuar a sê-lo. E isto (interioridade que se oferece para continuar a ser interioridade, sem a anular) é a definição de intimidade.”

“Somente aquilo que constitutivamente é fechado pode ser a sede de uma intimidade; (…).”

“A profundidade impõe tanto e é tão misteriosa porque é o espaço que sentimos criar-se, pela acção de algo que está a ponto de trair o seu ser para oferecê-lo numa entrega suprema, como é toda a entrega daquilo que não se tem primariamente e se adquire para para entregá-lo a quem somente assim pode ir a quem o chama. O profundo é uma chamada amorosa. Por isso, toda a gruta atrai.”

A música do coração
Por ser o trabalho uma incessante condição de vida, não podem as entranhas chegar à palavra; porque toda a palavra é um corte e delimitação na realidade e somente quem pode separar-se da vida pela sua condição independente e impassível pode alcançá-la. Toda a palavra suspende o tempo e introduz descontinuidade na sua incessante continuidade. Por isso preserva do tempo. Nada de estranho pode ter que a Filosofia, que descobriu o pensamento, chegasse a vê-lo fora do tempo. Na realidade não chegou, mas começou, ao descobrir o pensamento - «noein parmeniano» - numa abstracção do tempo. É a condição do próprio pensamento que em sua forma genérica, a simples palavra, executa uma descontinuidade onde parecia não poder havê-la. Faz saltar a lei do tempo, que marcha igual a si mesmo.
Não assim as entranhas que continuam mergulhadas no tempo sem poder sair dele. E por isso não puderam chegar à palavra; por falta de vagar e independência; por impossibilidade de pôr uma pausa no seu trabalho. O seu domínio é o ritmo, como em toda a maquinaria. A música das máquinas atrai porque é imagem da música do coração. Música, pulsar que representa, nisto, também, o pulsar de tanta entranha surda; que soa por toda a mudez dos restantes que, se não se fizessem ouvir de alguma maneira, ficariam cheios de rancor. Pois o rancor nasce do que não consegue, trabalhando sempre, ser escutado.”

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

"Génese seguido de Constelações". António Ramos Rosa (Roma Editora, 2007)

Não podemos ter a certeza da nomeação
Entre o acto ou a coisa e a palavra há uma cesura intransponível
Vivemos paralelamente entre dois mundos como estranhos
e só a invenção pode constituir a fábula
de uma unidade que será sempre incerta ou futura ou improvável
Ou talvez possamos fazer um pacto com o inexprimível
e aceitar o insondável como um solo absoluto
e embalar-nos no silêncio ou no berço da nossa morte
Se uma adolescente expõe o seio diante de um espelho
e se deslumbra apaixonadamente e levemente beija a sua imagem
nenhuma palavra poderá dizer o frémito desse instante absoluto
mas é esse o desejo da palavra que procura um lábio
para sentir que ele é o mundo que desponta e o estremecimento do contacto
consigo própria no apaixonado círculo do seu movimento voluptuoso
Ela navega na solidão de imagem em imagem
para encontrar o outro para beijar nele a sua própria boca
e no seu sexo fecundar a ave subterrânea
das suas anelantes entranhas fustigadas pelo tufão do desejo

*

Quando uma mulher se despe numa clareira rodeada de arbustos
e sobre uma toalha se estende ao sol o seu desejo é ambíguo
porque não quer ser vista e ao mesmo tempo a sua pele estremece
sob um olhar ausente ou de alguém escondido entre a folhagem
Também a palavra se expõe e oculta no seu fulgor de lâmpada
alimentada pelo fogo obscuro que aspira à nudez solar
Ela inclina-se sobre a água para ver a sua imagem
com o olhar não dela mas de um outro que a move
para ser a presença pura no olhar de ninguém
e poderá ser um dia o de algum leitor que se deslumbra com a sua abstracta nudez
Sem esta duplicidade e sem este puro recato através do silêncio
ela não possuiria o frémito ideal da sua exposição
e seria opaca ou demasiado transparente sem os meandros cintilantes
que a tornam fugidia como um fio de mercúrio
e a sua nudez teria a consistência inerte
de uma pedra sem fogo e sem sal sem o focinho do desejo
Por isso o poema é uma mulher que se enrola na sua nudez
até ser tão redonda como redondo é o ser
com a sua língua bífida entre os lábios do seu sexo

*

O que não é ainda o que está para ser o que já está a ser
e que não sendo excede sempre em íntima dissonância
que perpetua o mundo para além de nós
e em nós abre uma fenda mas também um espaço neutro
em que a palavra poderá encontrar a rosa do possível
sobre o impossível solo que a nega e que a suscita
O que o ser mais deseja é a integridade de um sentido
que envolva o não sentido que o transponha numa lenta coluna
de existência reunindo a sede e a móvel nascente
que não existe senão no movimento dos passos sobre o deserto
para que a página se ilumine e a boca respire o azul do dia
Mas o poema é sobretudo o movimento do sono adolescente
em que o mundo não é mais que maresia cintilante
e o ritmo das esferas o rolar de uma bola de esterco que um escaravelho empurra

*

Há palavras que esperam que o branco as desnude
para se tornarem transparentes e vazias
A delicadeza da lâmpada é uma oferenda do olvido
a folha flexível é uma luva vegetal para a mão que oscila

Como o abdómen de uma adolescente
a página suscita a fértil fragilidade
de uma caligrafia que se apaga sobre os sulcos da neve
Aí aparece a graciosa metade
em que cintila o pólen da límpida abolição

Escrevo para ser contemporâneo das nuvens
para pertencer à pobre e nua pátria inerte
coberta pelo violento alfabeto dos cláxons
Escrevo para que se levantem os pássaros de areia
e ao pulverizarem-se espalhem a poeira do seu desaparecimento

terça-feira, 10 de agosto de 2010

As palavras transferidas. V - O mito do lugar

Entre o silêncio e o mito, as palavras transferidas:
na dicotomia da palavra, o mito agoniza e sobrevive
na narrativa do que só pode ser na sua negação.
Na essência do mito, o silêncio
resgata da matéria os remos
a declarar todo o luto inaceitável
para que seja luto.
Em ciclo, o silêncio resgata-se e implode
como hiato, de novo na palavra.
As quatro figuras celestes resolvem a deriva:
os lugares são constructo da atenção seletiva.
Então, sob vagas de ira e piedade,
a ilha submerge no tempo,
neste mar de ocultação e esquecimento.
Despedida é a palavra que prova os ventos
e, transferida, enraíza a terra luminosa
sempre em direção à matéria do silêncio:
as tuas mãos sobre os meus olhos
num jogo de crianças, conchas ternas
mostrando-me, vendados, a noite infinita;
desvendados, o lugar submerso
aonde não posso voltar.

sábado, 7 de agosto de 2010

"Rima Pobre - Poesia Portuguesa de Agora". Joaquim Manuel Magalhães (Presença, 1999), reproduzido no Prefácio a "Do Extermínio", de Jaime Rocha (Relógio d´Água, 2003).

"Como nunca gostei de revistas literárias, normalmente deito-as fora quando por azar me chegam às mãos, embora não sem antes as ter, perversamente, lido. Uma vez por outra, se vale significativamente a pena, faço um recorte e meto-o num livro. [...] Como não acredito em grupos ou gerações literárias, normalmente manobras tacanhas para que os outros reparem no que excepcionalmente apenas reparariam, como só me preocupo com obras que para mim valham individualmente por si mesmas e a outras se justaponham para formar o valor de uma tradição de inovações, os escritores amontoados em redor uns dos outros causam-me uma certa sufocação."

"O ornamento é a roupagem «a mais» da escrita poética e, para o que importa agora, do lirismo. Mas o ornamento tem muitos disfarces. Pode ser o epigonismo processual para que o triunfo literato fique mais assegurado; a repetição sem outra inventividade do já anteriormente feito pelo próprio autor; ou esse máximo ornamento que é o da poesia entendida como um manobrismo mundano e de aquisição de benesses. Isto é, tanto quanto uma questão retórica ou prosódica, o ornamento é a mais profunda falta de ética na figura do poeta.
O ornamento é, ao fim e ao cabo, tudo o que enfraquece um poema, não o deixando apenas com o impeto do inesperado ou a ventania da invenção sem quaisquer truques. Em resumo, e bastante comicamente, detecta-se nesses poetas que vivem do pedantismo para auferir cuidados sociais."

"(...) O sensorial ou o mundo ou a realidade, chamemos-lhe como quisermos, nunca são, na escrita, uma transposição. São uma idealização objectiva, um falso a erguer um verosímil, essa transformação do trabalho mimético por onde falam os sentimentos e as arquitraves dos poemas. Os olhos que vêem o visto num poema descrevem como se fossem olhos cegos. E, por essa cegueira - que exige o andaime da referência, da enumeração, da relação indecisa da palavra e do sentido - o leitor lê, aproxima-se, muitas vezes compreende e actua.
Porquanto o poeta não pode nunca acreditar na literatura quanto o leitor, para que o leitor possa acreditar no poder representacional das palavras. (...)"

"(...) Nada que venha das palavras o tempo e o espaço escutam: são eles que fazem as palavras escutar. Mas sabem que tal perscrutação - ou sabemos nós por eles - sobrevive nas palavras ideológica e psiquicamente feridas. Assim, o tempo e o espaço dizem ao poeta (e não ao contrário, como os naturalismos acreditam) que, sendo ele um padecedor deles mesmos, pode procurar, pela des/crença da escrita, permanecer como construtor de mundo (que de espaço e de tempo é, por pensamento ou acção, percebido)."

"(...) Através de sucessivos desabamentos (os ritmos), de sucessivas reconstruções (a retórica), dentro de uma fuga (após uma entrega) ao princípio de caos que repugna a quem não quer resvalar para as permissividades totalizadoras. Que dão o tom prescritivo de tanta poesia secundária. Pois que o poema visa a coesão, uma arquitectura premeditada. A qual pela leitura se acrescenta de interligações humanas, já não só verbais. De uma interioridade humana a uma exterioridade humana, o poema ronda o caos."

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

o poema é este

o poema é este
sentido é
norte e sul são gentios
bússola pai

naquele tempo dito isso
e isto dito assim
denota conotação bíblica como gostarias
e de seguida aludir às canções da missa
e da barba na espuma dos domingos
de manhã eu aleluia acordava
e vingava-me com ok computer
draconian times, razorblade suitcase
without you i´m nothing
(faltaram-me nevermind e mellan collie
faltam-me ainda
tenho de ver isso)

naquele tempo
não havia tempo dito isso
havia a gaveta do totoloto
a crucificação dos números
um saco com quarenta e cinco quadrados de esferovite
uma caneta com tômbola
o hábito do registo
a espera e o esquecimento do sorteio
espera e esquecimento, como tudo
o que se espera e de esperar se esquece
a procura da chave na ânsia de um três
a espera, o esquecimento e a ânsia, como tudo
o que se espera e de esperar se esquece, se acorda, se anseia
e na ânsia se espera

jogaste todas as semanas para te calhar
um ritual

naquele tempo
não havia tempo
para estarmos no mesmo tempo dito isso
havia a bicicleta
duas molas nas calças
para pedalar o domingo
dizerem-me que te viram por todo o lado
e no verão no muro do Berlim
à espera da festa dos baldes de água
às duas da manhã sobre a malta

amanhar a terra ao sábado
ir à lenha ou protestar a chuva
ainda bem, que assim eu não ia

sossegar a gata na hora da novela

naquele tempo
não havia tempo
para estarmos no mesmo tempo
a olhar o tempo dito isso
mas houve uma tarde derradeira
dois cornetos sentados no jardim do hospital
em silêncio olhando em frente
sorvendo o tempo unificado

o poema é este
sentido é
norte e sul são gentios
bússola pai

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

As palavras transferidas. IV - O complexo do mito

Entre a matéria e o mito, as palavras transferidas:
matéria, raso,
mito, experiência.
Tudo o que é de relação potencia ou comporta o mito.
As notícias ensinam os dois conceitos de tragédia:
fruição, inquietação,
com que produzimos e reproduzimos valores –
as propriedades míticas à hora certa:
uma cama suspensa foi avistada esta tarde
ao largo das Berlengas, quando
o tripulante sodomizava quatro gaivotas
que, agradecidas, o ajudaram a voar no lençol.
Boa noite, estas foram as notícias,
refogue-as com as outras surpresas e expectativas
no seu caldo habitual
pois não lhe será dado outro tacho.
E assim se cozinha e se serve uma mixórdia de mitos
consubstanciados
a barrar a matéria
para que nos voltemos sempre a ver de novo amanhã.

As palavras transferidas. II - O mito do eu

Entre o rosto e a mão, as palavras transferidas:
rosto, mão,
desolação e desejo.
De alguma forma (e se isto é forma),
todas as substâncias podem ser unidades míticas.
Despimos a forma
e o nu, o integral, é a sua abstração
complacente.
A desolação tem a forma do meu rosto
e o desejo tem a forma da tua mão.
Desolação, desejo,
rosto, mão,
a cama suspensa
por estas quatro figuras peregrinas
que procuro conhecer enquanto me transportam.
As palavras transferidas qualificam-nas:
despidas, podem agora ser deuses
num processo ilusório ad eternum
a fundir verdades complacentes,
ilusões, abstraídas na angústia,
no desvendamento de mim,
coberto pela forma da tua ausência.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

"Borges verbal". Jorge Luís Borges (org. Pilar Bravo e Mario Paoletti, Assírio e Alvim, 2002)

“Sustentar a seriedade essencial da poesia é (…) estar do lado de Aristóteles que, já o sabemos, escreveu que a poesia é mais verdadeira que a história; isto é, para mim, nos símbolos da poesia há uma verdade essencial e se essa verdade não existe, os símbolos não valem nada, são meros simulacros de símbolos.”

“A literatura é como uma biblioteca infinita, da qual cada indivíduo só pode ler umas páginas; mas talvez nessas páginas já esteja o essencial, talvez a literatura esteja a repetir sempre as mesmas coisas com uma acentuação, com uma modulação ligeiramente diferente.”

“Que coisa!, essa palavra «cosmética» tem a sua origem em «cosmos». O cosmos é a grande ordem do mundo e a cosmética a pequena ordem que uma pessoa impõe à sua cara. É a mesma raiz: cosmos = ordem.”

“Quando não estamos bem arranjados, sentimo-nos como uma espécie de vagabundos. A pessoa arranjada já pode aspirar à honra, à estima dos outros, talvez à inteligência também.”

“Somente se pode definir o que é abstracto: um polígono ou um congresso. Mas como definir o sabor do café ou essa tristeza agradável dos entardeceres, ou essa esperança sem dúvida ilusória, que se pode sentir de manhã. Definir é exprimir algo em outras palavras e essas outras palavras podem ser menos expressivas que o definido.”

“O essencial é indefinível. Como definir a cor amarela, o amor, a pátria, o sabor do café? Como definir uma pessoa que amamos? Não se pode.”

“Ao adormecer, cada um de nós esquece-se de si mesmo. E ao acordar recorda-se.”

“A literatura fantástica não é uma evasão da realidade, mas ajuda-nos a compreendê-la de um modo mais profundo e complexo.”

“A literatura que se chama existencial não insiste nas capacidades do homem mas nas suas fraquezas, e isso é imoral.”

A extrema-direita e a extrema-esquerda são igualmente partidárias do Estado e da sua intromissão em cada instante da nossa vida.”

“O humor britânico procede da intuição de uma verdade ou, se não receamos as palavras altissonantes, de uma sabedoria. O engenho francês costuma ser verbal. E isso que se chama «o engenho espanhol» é uma forma de trocadilho; procede de acasos fonéticos.”

“Alguém escreveu que era «um lugar-comum» de Ibsen ele ter dito que cada um deve viver a sua vida. É um lugar-comum porque a ideia de Ibsen teve êxito, mas realmente Ibsen em Casa de Bonecas apresentou o caso de uma mulher que abandona o marido e os filhos não porque tem um amante, isso teria sido aceite pela sua época, mas porque não quer ser um objecto de luxo, quer viver a sua própria vida. Essa foi uma ideia tão revolucionária, com tanto êxito que agora é um lugar-comum isso de viver a própria vida; e daí o perigo do drama com tese: se a tese fracassa, o drama é inútil, e se a tese tem êxito o drama é supérfluo.”

“Sempre que se pergunta a alguém que livro levaria para uma ilha deserta, responde que o D. Quixote. Mas acontece que, se se tem umas férias de Verão de vinte dias, ninguém o leva…”

“Não gosto [da Ilíada]. A sua personagem central parece-me um parvo. Quero dizer que não se pode admirar um homem como Aquiles -, não? Um homem continuamente mal-humorado, zangado porque as pessoas foram injustas com ele, e que acaba por enviar ao pai o cadáver do homem que matou.”

“(…) Se uma gata parisse dentro de um forno -, você chamaria ao que ela parisse gatinhos ou pães?”

“Descobri com horror que os adjectivos se conjugam, que mudam conforme se referem a um facto presente, um facto passado ou um facto futuro. E isso aprende-o uma criança japonesa sem se aperceber de que está a aprender alguma coisa muito, muito complexa.”

“O meu poema “Limites” (Para sempre fechaste alguma porta / e há um espelho que te aguarda em vão…) corresponde a uma experiência que toda a gente teve: o facto de que, quando se chega a uma certa idade, executa muitos actos pela última vez. Eu cheguei a sentir isso. Eu era um velho e, ao olhar a biblioteca, pensei: quantos livros há que eu li e não voltarei a ler; e também a ideia de que quando nos encontramos com uma pessoa equivale a uma despedida possível, já que talvez não voltemos a vê-la. Isto é: estamos a dizer adeus às pessoas e às coisas continuamente, e não sabemos.”

“Quando morre a mãe, todos os filhos sentem que a aceitaram como se aceita a Lua ou o Sol ou as estações do ano, e que abusaram dela. Antes, creio que não se dá por isso.”

“A história é a nossa imagem da história. E essa imagem melhora sempre, tende para a mitologia, para a lenda. Além disso, cada país tem a sua mitologia privada; a história de cada país é uma carinhosa mitologia que talvez não se pareça em nada com a realidade.2

Enamorei-me, às vezes, de pessoas culturalmente muito limitadas e essas relações foram desastrosas. (…) Aqui posso recordar Nietzsche, escritor que não é da minha devoção. Disse: «O matrimónio é uma longa conversa.»”

“Todas as palavras foram, alguma vez, um neologismo.”

“Não me lembro se há paisagens no Quixote. Não sei se chove alguma vez no romance, creio que não. O escritor documentado é uma invenção do romance francês do século XIX. Esse escrúpulo corresponde a Flaubert e não a Cervantes.”

“[Os países] são superstições ou convenções. O que é real são somente os indivíduos. Por isso toda a história universal é falsa. […] Infelizmente para os homens, o planeta foi dividido em países, cada um provido de lealdades, de queridas lembranças, de uma mitologia particular, de direitos, de agravos, de fronteiras, de bandeiras, de escudos e de mapas. Enquanto durar este arbitrário estado de coisas, serão inevitáveis as guerras.”

“Talvez por um princípio de consciência literária, desde menino preferi dizer pai e mãe em lugar de papá e mamã, palavras ridículas, oficiais e frias. É impensável uma oração que diga: «Papá nosso que estais nos céus…».”

“Conheço muitas pessoas que foram psicanalisadas e estão a vigiar-se dia e noite. Por exemplo, uma senhora (de cujo nome não quero lembrar-me): se me encontro com ela e lhe pergunto como se sente, responde-me: «Hoje sinto-me deprimida» ou «Hoje sinto-me menos deprimida»… (…) É uma ciência totalmente hipotética. Como pode basear-se uma ciência no que lembra ou deixa de lembrar uma pessoa? (…) É uma ciência baseada na vaidade das pessoas. Toda a gente gosta de falar de si mesmo e que o levem a sério.”

“Os meus sonhos, as minhas fantasias são tão reais como a própria realidade. Creio sinceramente que com o decurso do tempo o presente torna-se passado, o passado transforma-se em memória e a memória é sempre inventiva. Ao fim e ao cabo, tudo é mitológico e místico. E bem, decidi ser místico a partir de agora.”

“Não sei até que ponto um escritor pode ser revolucionário. Antes de mais, está a trabalhar com o idioma, que é uma tradição.”

“Qualquer pessoa pode pôr-me numa cadeia, pode desterrar-me ou pode matar-me, mas fazer-me sofrer intimamente isso apenas podem fazê-lo as pessoas a quem eu quero. Se eu quero muito a uma pessoa, e essa pessoa não me quer, destrói-me tanto mais quanto mais eu a amo.”

“Agora as pessoas não tendem a ascender, mas antes todos a cair, a descer na escala social. Creio que todo o país está em decadência, a decair. E, como o espaço é infinito, certamente continuaremos a cair indefinidamente.”

“Apollinaire disse que o tempo da rima tinha passado. Tinha razão quanto a ele mesmo, posto que ele podia fazer admiráveis versos livres. (Mas) se Victor Hugo tivesse dito o mesmo tinha-se enganado, porque ele podia rimar de uma maneira que me parece muito bela. As teorias […] dependem do génio de cada poeta. É inútil discutir uma teoria estética. É preciso ver que objecto ela serviu.”

“A vingança é inútil e é cruel e absurda. A única vingança verdadeira é o esquecimento. E o perdão.”

(Os destaques em bold foram colocados por mim, substituindo deste modo os verbetes originais, que não aprecio.)