domingo, 31 de julho de 2011

Octavio Paz e o todo

"Ao nascer, fomos arrancados da totalidade; no amor, todos nos sentimos regressar à totalidade original. Por isto, as imagens poéticas transformam a pessoa amada em natureza - montanha, água, nuvem, estrela, selva, mar, onda - e, por sua vez, a natureza fala como se fosse mulher. Reconciliação com a totalidade que é o mundo. Também com os três tempos. O amor não é a eternidade; tão-pouco é o tempo dos calendários e dos relógios, o tempo sucessivo. O tempo do amor não é grande nem pequeno: é a percepção instantânea de todos os tempos num único, de todas as vidas num instante. Não nos liberta da morte, mas faz-nos vê-la cara a cara. Esse instante é o reverso e o complemento do «sentimento oceânico». Não é o regresso às águas da origem mas a conquista de um estado que nos reconcilia com o exílio do paraíso. Somos o teatro do abraço dos opostos e da sua dissolução, resumidos numa única nota que não é de afirmação nem de negação, mas de aceitação. Que vê o casal no momento de um bater de pálpebras? A identidade do aparecimento e do desaparecimento, a verdade do corpo e do não-corpo, a visão da presença que se dissolve num esplendor: vivacidade pura, pulsação do tempo."

In A chama dupla. Octavio Paz, Assírio & Alvim, 1995.

Octavio Paz e a desdita

"Pouco podemos contra os infortúnios que o tempo reserva a cada homem e a cada mulher. A vida é um risco permanente, viver é expor-se. A abstenção do ermitão acaba em delírio solitário, a fuga dos amantes em morte cruel. Outras paixões podem seduzir-nos e arrebatar-nos. Umas superiores, como o amor a Deus, ao saber ou a uma causa; outras baixas, como ao dinheiro ou ao poder. Em nenhum desses casos desaparece o risco inerente à vida: o místico pode descobrir que corria atrás de uma quimera, o saber não defende o sábio da decepção que é todo o saber, o poder não salva o político da traição do amigo. A glória é uma cifra frequentemente equivocada e o esquecimento é mais forte que todas as reputações. As desditas do amor são as desditas da vida."

In A chama dupla - amor e erotismo. Octavio Paz, Assírio & Alvim, 1995.

Octavio Paz e o egoísmo

"O grande perigo que espreita os amantes, a armadilha mortal em que muitos caem, é o egoísmo. O castigo não se faz esperar: os amantes não vêem nada nem ninguém que não seja eles mesmos até que se petrificam... ou se detestam. O egoísmo é um poço. Para sair para o ar livre, há que olhar para além de nós mesmos: lá está o mundo e ele espera-nos."

in A chama dupla - amor e erotismo. Octavio Paz, Assírio & Alvim, 1995.

Octavio Paz e o amor

"O amor não busca nada mais além de si mesmo, nenhum bem, nenhum prémio; tão-pouco persegue uma finalidade que o transcenda. É indiferente a toda a transcendência: principia e acaba nele mesmo. É uma atracção por uma alma e um corpo; não uma ideia: uma pessoa. Essa pessoa é única e está dotada de liberdade; para a possuir, o amante tem que ganhar a sua vontade. Posse e entrega são actos recíprocos."

in A chama dupla - amor e erotismo. Octavio Paz, Assírio & Alvim, 1995.

Octavio Paz e o teatro do abraço

"O encontro erótico começa com a visão do corpo desejado.Vestido ou nu, o corpo é uma presença: uma forma que, por um instante, é todas as formas do mundo. Mal abraçamos essa forma, deixamos de nos aperceber dela como presença e agarramo-la como uma matéria concreta, palpável, que cabe nos nossos braços e que, todavia, é ilimitada. Ao abraçar a presença, deixamos de vê-la e ela própria deixa de ser presença. Dispersão do corpo desejado: vemos somente uns olhos que nos olham, uma garganta iluminada pela luz de uma lâmpada e depressa regressada à noite, o brilho de uma coxa, a sombra que desce do umbigo ao sexo. Cada um destes fragmentos vive por si só mas alude à totalidade do corpo. Esse corpo que, de súbito, se tornou infinito. O corpo do meu par deixa de ser uma forma e converte-se numa substância informe e imensa na qual, ao mesmo tempo, me perco e me recupero. Perdemo-nos como pessoas e recuperamo-nos como sensações. À medida que a sensação se torna mais intensa, o corpo que abraçamos faz-se mais e mais imenso. Sensação de infinidade: perdemos o corpo nesse corpo. O abraço carnal é o apogeu do corpo e a perda do corpo. Também é a experiência da perda da identidade: dispersão das formas em mil sensações e visões, queda numa substância oceânica, evaporação da essência. Não há forma nem presença: há a onda que nos embala, a cavalgada pelas planícies da noite. Experiência singular: inicia-se pela abolição do corpo do nosso par, transformado numa substância infinita que palpita, expande-se, contrai-se e encerra-nos nas águas primordiais; um instante depois, a substância desvanece-se, o corpo volta a ser corpo e reaparece a presença. Somente podemos aperceber-nos da mulher amada como forma que esconde uma alteridade irredutível ou como substância que se anula e nos anula."

in A chama dupla - amor e erotismo. Octavio Paz (Assírio & Alvim, 1995).

Octavio Paz e a poesia

"Passaram os anos. Continuei a escrever poemas que, com frequência, eram poemas de amor. Neles apareciam, como frases musicais recorrentes - também como obsessões -, imagens que eram a cristalização das minhas reflexões."

"Para mim a poesia e o pensamento são um sistema de vasos comunicantes. A fonte de ambos é a minha vida: escrevo acerca do que vivi e vivo. Viver é também pensar e, às vezes, atravessar essa fronteira na qual pensar e sentir se fundem: a poesia."

"Sem dúvida, a poesia é feita de palavras enlaçadas que lançam reflexos, cintilações e cambiantes: o que nos mostra são realidades ou espelhismos? Rimbaud disse: Et j´ai vu quelquefois ce que l´homme a cru voir. Fusão de ver e crer. Na conjunção destas duas palavras está o segredo da poesia e dos seus testemunhos: aquilo que o poema nos mostra não o vemos com os nossos olhos de carne mas com os do espírito. A poesia faz-nos tocar o impalpável e escutar a maré do silêncio cobrindo uma paisagem devastada pela insónia. O testemunho poético revela-nos outro mundo dentro deste mundo, o mundo outro que é este mundo."

in A Chama Dupla - amor e erotismo. Octavio Paz (Assírio & Alvim, 1995).