sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Arte e Instinto. Denis Dutton (Temas e Debates, 2010)

“Tenho utilizado a arte como uma forma de alcançar as emoções da vida e a ler nesta as ideias da vida. Tenho cortado blocos com uma navalha. Tombei dos grandiosos cumes da exaltação estética para os sopés aconchegantes da afável humanidade. É uma terra simpática. Ninguém deve ter vergonha por se sentir bem aqui. Apenas quem nunca esteve nas alturas poderá sentir algum desânimo nestes plácidos vales. E, àquele que tenha encontrado a felicidade nos calorosos campos e pitorescos recantos do romance, que não lhe ocorra poder descortinar os austeros e emocionantes êxtases daqueles que escalaram cumes frios e brancos da arte.” (Dutton, citando Clive Bell).

“Por causa da selecção sexual, associamos sempre às artes uma inabalável sensação de que estas são feitas por um indivíduo para deleite de outro indivíduo.”

“Nas suas meditações sobre o kitsch no livro A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera nota a essencial autoconsciência que o kitsch promove. O objecto kitsch, como explica Kundera, clama pela «segunda lágrima». A primeira lágrima é a que nós deitamos na presença de um acontecimento trágico, deplorável ou talvez belo. A segunda lágrima é deitada depois de reconhecermos a nossa própria natureza sensível, a nossa habilidade espantosa para sentir tanta pena, para entender um tal sofrimento ou beleza. Portanto, um gosto pelo kitsch é, por isso, essencialmente autocomplacente. […] O ponto de referência definitivo para o kitsch sou sempre eu: as minhas necessidades, os meus gostos, os meus sentimentos profundos, os meus interesses relevantes, a minha moralidade admirável. […]
O kitsch não nos mostra nada genuinamente novo, não muda nada na nossa alma maravilhosa e brilhante; pelo contrário, congratula-nos por sermos, exactamente, a pessoa requintada que já somos.”

Guia de Conceitos Básicos. Nuno Júdice (Dom Quixote, 2010)

UMA REFLEXÃO SOBRE A BELEZA ETERNA,
INTERROMPIDA PELA VISÃO DO EFÉMERO

A harmonia que, para os clássicos, exprimia a relação
das partes com o todo, atravessou os milénios sem alterar
o equilíbrio do homem no centro da sua esfera. Esse
homem, com a sua representação simétrica, define-se
a partir de um universo que tem um limite
na compreensão divina da matéria
e do espírito. E poderia continuar assim, se
não ouvisse um copo a partir-se no fundo
da casa - alguém que se distraiu, e que rompeu,
de súbito, o meu raciocínio. Ao mesmo tempo,
porém, descobri que nada do que eu pensava
era original; e só ao apanhar do chão os vidros
partidos, um brilho leve no seu contacto com
a luz me fez pensar que, afinal, a harmonia
também nasce da destruição, e o centro da esfera
desloca-se para o fragmento que seguro com
os dedos, antes de o deitar para o lixo.


ESBOÇO DE UMA RELAÇÃO ENTRE O SER
E A NATUREZA

Os que vivem devagar não olham para trás,
nem sabem o que vem à sua frente. Sentam-se
na vida que apanham quando o tempo passa
por eles, e tiram-na dos ramos pesados
como se fosse o fruto que vão abrir
com o cansaço dos seus dedos.

Os que vivem devagar desenham
 os seus passos no chão para onde não olham,
quando atravessam o instante, e sabem que
o seu movimento é como o das árvores
que o vento agita, e nunca saem
do lugar onde têm a sua raiz.

Os que vivem devagar têm a pressa
da folha que cai, no outono, e flutua
com o último brilho de um viço
estival, antes de pousar onde a terra
preparou o seu leito, e aí adormecer
na doce corrupção da eternidade.

HAMLET E OFÉLIA

Não é todos os dias que hamlet apanha
o táxi para elsenor, onde ofélia o espera com uns ovos
estrelados à pressa para ele comer. No táxi,
hamlet ouve o taxista perguntar-lhe qual
o destino, e ele indeciso responde-lhe
que é o caminho mais curto para ser. Mas o taxista
não dá com ele, entre ser e não ser, e enquanto
os ovos ficam frios, hamlet pede ao taxista
que fale com o polónio, que deve saber se já há uma
auto-estrada para a dinamarca. A verdade é
que não, só se ele quiser apanhar o ferry-boat
para elsenor, onde ofélia deitou os ovos para
o lixo e espera que ele se contente com um
macdonald´s. Mas hamlet já deixou o táxi,
depois de pagar o que tinha a pagar, e atravessa
o jardim sem saber o que fazer, depois de ofélia
lhe ter ligado para o telemóvel a perguntar qual o rio
mais próximo, para fazer o que tem de fazer.

Casa da Misericórdia. Joan Margarit (Ovni, 2009)

PROZAC

A lua é o gelo no copo de sombra
que a vida me oferece. Que história
não tenta negar o seu tenebroso epílogo?
Mas o monstro sou eu, e não outro alguém
a quem, para me salvar, posso matar.
A vida é justamente este desastre.
Como extirpar a culpa das pedras?
Como deter a dor dentro de um túnel?
Como ouvir se, tão longe dentro da noite,
está a chorar a nossa filha morta?
Os antidepressivos são pesticidas.
E o final dos contos é sempre falso,
para que as crianças não se suicidem.