domingo, 25 de julho de 2010

"Identidades Pessoais - interacções, campos de possibilidade e metamorfoses culturais". Ricardo Vieira (Colibri, 2009)

“Somos, efectivamente, cada vez mais, multiculturais, interculturais às vezes, mestiços, compósitos, translocais e menos monolíticos (na construção pessoal e social já que, nas atitudes, às vezes, o local raia o umbilicalismo). Porventura, não somos apenas uma única coisa facilmente definível e não somos apenas de um sítio, de um lugar. Não nos sentimos de uma única terra; vemos em mais que um lugar. Por isso estamos; isso sim, verdadeiramente não somos. Em vez de sermos, estamos. Estamos em trânsito. Estamos sendo.”

“À questão “onde vives?” costumo responder com outra questão: “o que entendes por viver? Perguntas onde eu durmo, é isso? (…) Somos, pois, identidades em trânsito, em gerúndio. Daí que muitos continuem a insistir “mas vives em tal parte, não é?” Bom, eu diria que esta lógica localista e monolítica está de tal forma incorporada em nós que as perguntas que se fazem desmascaram qualquer postura e discurso que se pretenda ter como pluralista, globalizante ou outro semelhante (Maalouf, 2002). (…) O senso comum que há em nós cai, não raras vezes, nesse essencialismo redutor que formula as perguntas “Quem és? Donde és? Onde vives?” com base numa visão redutora dos processos de identificação. (…) Falar de identidade, hoje, implica, efectivamente, pensar dinamicamente e não apenas estruturalmente.”

“Cada homem quer transformar o que não é seu naquilo que quer, e que quer que seja seu. Busca assim uma síntese com a acção que ele quer. Constrói-se assim o Eu. Uma construção cuja matriz cultural é, de alguma forma, o outro, matriz da capacidade de pensar e de dar valor às coisas. Em boa verdade são os outros que constituem os referenciais para se ser ou, pelo menos, parte dos outros reajustadas ao eu que se torna assim num nós. Um eu que, portanto, é sempre um eu plural. Um eu que, assim, é sempre um eu multicultural em termos de construção, no sentido de matizado de diferentes influências. Trata-se de uma tarefa tipo bricoleur, como escreveu Lévi-Strauss (1962), a propósito de que este constrói todo o tipo de coisas com a matéria-prima que tem à mão.
A tomada de consciência do eu e do outro faz-se quer pelo jogo de oposição e demarcação, o enclausuramento no nós cultural, quer pela assimilação, no fundo a total abertura à diferença. Em ambos os casos há comunicação, processos interactivos caracterizados pela existência da percepção da alteridade.”

“A identidade pessoal, ao contrário da personalidade, que tem uma dimensão mais estrutural, nunca está acabada. (…) «nós somos também `pós´ relativamente a qualquer concepção essencialista ou fixa de identidade» (Hall)”.

“É assim que a vida individual e social não pode ser considerada um dado, mas sim uma construção em auto-reorganização permanente.”

“Nas sociedades modernas é cada vez menor o peso da sociedade na determinação das identidades. A sociedade oferece apoios que facilitam o trabalho individual de encerramento em si. A auto e a heteroformação vão a par mas, finalmente, é o Homem que se constrói a si próprio, não sendo o produto do papel químico do pattern of culture da escola de cultura e personalidade (…). Daí a importância da captação das subjectividades dos sujeitos (…). Daí, portanto, o interesse da antropologia pela pessoa. Não são só os indivíduos que passam pelas culturas; são, também, as culturas que passam pelo indivíduo das quais retira peças (Lévi-Strauss, 1977) para construir o seu eu mestiço e compósito (Maalouf, 2002) e, por vezes, sobreposto (O´Neill, 2002).”

“Michel Serres (1993) põe bem em evidência o facto de em todos os processos de aprendizagem e de construção e reconstrução da identidade por que passamos ao longo da nossa existência se transitar de uma margem para a outra de um rio, metaforicamente falando, sendo que entre as duas há um centro – um centro de dúvida, de todas as possibilidades, de oportunidade para tomar todas as direcções. Esse centro é como o ponto central de uma estrela que irradia em todas as direcções. Por outro lado, este lugar central, a que o autor atribuiu o nome de “terceiro lugar” ao longo de toda a obra [O Terceiro Instruído], é um local de transição, de mudança de fase e, por conseguinte, de sensibilidade, com obstáculos – de exposição. Contudo, o autor refere-se a esse terceiro lugar como algo necessário à aquisição de conhecimento, à aprendizagem e também como algo que proporciona uma constante instrução a um “terceiro instruído” – aquele “mestiço”, resultado de meios-termos entre diferentes locais e caminhos possíveis de percorrer que cada indivíduo experimenta ao longo das aprendizagens que faz ao longo da vida.
(…) Serres (1993) mostra que a prática é o caminho para o saber – precisamos experimentar, precisamos de prática. Ao experimentar estamos também a dar-nos à possibilidade de nos relacionarmos com outros, sendo que dessa relação surgem também terceiros. Se surge um terceiro lugar que corresponde à relação que se estabelece entre os dois, surge também um outro terceiro em nós e um outro naquele com quem estabelecemos a relação – o outro passa a ver e a conhecer uma terceira pessoa.
O Terceiro Instruído refere-se, assim, àquilo que surge entre duas margens – entre a direita e a esquerda, entre o homem e a mulher, entre uma margem do rio e a outra. Noutro lugar, refiro-me a esta matéria dizendo que 1 e 1 = 3, na medida em que existe um terceiro – a relação que se estabelece entre ambos, a transformação.”

«“[hoje] não construímos grandes relatos de emancipação mas pequenos relatos de convivência. Agora as palavras ambíguas, cada uma delas com sua parte de verdade e sua manipulação, são democracia, comunidade, coesão, diálogo… e outras palavras relacionadas, como diversidade, tolerância, pluralidade, inclusão, reconhecimento, respeito. E são essas palavras as que nos soam como falsas quando as ouvimos no interior de muitos discursos dominantes no campo político, educativo, cultural, ético, ou, inclusivamente, empresarial. São palavras cada vez mais vazias e esvaziadas que significam, ao mesmo tempo, tudo e nada: marcas, clichés, etiquetas de consumo, mercadorias que se avaliam bem no mercado com a alta de boa consciência: palavras que mascaram a obsessiva afirmação das leis e da excessiva ignorância dos sentidos; palavras que permitem ocultar-nos atrás de nós mesmos […]; palavras para ensurdecer os ouvidos e nos tornar insensíveis às diferenças, para continuarmos sendo nós mesmos […] com o mesmo medo de nos abandonarmos ou sermos outro(s) e em trânsito.” (Larrosa e Skliar)».

“O princípio de corte que, ao contrário da posição dos culturalistas, permite pensar a descontinuidade cultural, acaba por ser um mecanismo de defesa de identidade cultural por parte de grupos minoritários. O caso dos imigrantes africanos muçulmanos que trabalham nos matadouros de suínos em França é um óptimo exemplo desse corte que subjectivamente é um recurso usado pelo modelo bilingue, bicultural e multicultural que tenho estudado.”

“O sujeito, a pessoa, é mais um processo que uma estrutura; é um processo dinâmico, aberto, ainda que, simultaneamente, muito condicionado pelos esquemas de pensamento e de acção interiorizados na infância (cf. Bourdieu, 2005). Mas não inculcados a papel químico, como que perfeitamente determinados; antes, produto de um bricolage (cf. Levi-Strauss, 1977 e 1983; Perrenoud, 1993) da auto e heteroconstrução (Vieira, 1999b), e, portanto, arrumados, subjectivados, de determinada forma impossível de prever.”

“É por parecermos cada vez menos diferentes que afirmamos com raiva as nossas diferenças.”

“O desafio de compreender a vida, através de biografias e genealogias, é aqui apresentado como um método com potencialidades do qual a educação pode servir-se para o entendimento das representações e para a construção da mudança em face das novas exigências sociais.
Os actores, os sujeitos, ou melhor, os agentes sociais que constituem o nosso objecto, reflectem eles próprios sobre as nossas intenções e sobre si próprios. São também investigadores de si próprios. Não são vazios de teoria. O papel do investigador não é o de, por artes mágicas, encontrar o verdadeiro sentido das práticas dos sujeitos estudados. Através de entrevistas etnobiográficas conducentes à construção de histórias de vida, procuro mostrar o interesse interaccionista de o objecto de estudo saber das intenções do investigador, no sentido de os dois acederem a dimensões interpretativas que não estavam explicitadas para ambos. Não é apenas o investigador que tem competências compreensivas. A compreensão já está presente nas actividades mais banais da vida quotidiana. E ambos, entrevistador e entrevistado, podem aceder a novas dimensões informativas e formativas.
O modelo 1 e 1 = 3, invocado atrás, considerado como metáfora, trata, no fundo, de como através duma entrevista informal e etnográfica sobre as práticas dos sujeitos estudados, ou sobre as suas trajectórias sociais, se pode encontrar um caminho para a redescoberta de si mesmo; para tornar consciente a razão de acções que se praticam sistemática e rotineiramente; (…).”

terça-feira, 20 de julho de 2010

"The Fire". Cobolt

Cruzo os remos como lápis no papel, o incêndio por delimitar na folha contínua de um mar em branco, sem linhas, sem margens. Fixo os olhos na lâmpada e fecho-os para reter a cor do fogo na salvação das cinzas.

http://www.myspace.com/coboltmusic

domingo, 18 de julho de 2010

retenção na fonte

"Escrever vem a ser o contrário de falar; fala-se por necessidade momentânea imediata e, ao falar, fazêmo-nos prisioneiros do que pronunciámos, enquanto que no escrever se acha libertação e perdurabilidade - só se encontra libertação quando aportamos a algo permanente. Salvar as palavras da sua momentaneidade, de seu ser transitório, e conduzi-las em nossa reconciliação rumo ao perdurável, é o ofício de quem escreve."
Porque se escreve, María Zambrano, 1934 (in "A metáfora do coração e outros escritos", Assírio e Alvim)

María Zambrano disse isto em 1934
um ano ainda distante dos telemóveis
e das 341 mensagens desesperadas que enviei por SMS
ao mesmo número
qual de todas a mais irreconciliável
e cada uma perdurando o sacrifício de todas
as palavras

María Zambrano disse que havia no escrever um reter as palavras
e disse-o a tempo - ou eu não liguei
ou escrever vem hoje a ser o contrário de escrever
e falar o dominante bocejo do silêncio

María Zambrano disse que no escrever as palavras vão assim
caindo, precisas, num processo
de reconciliação do homem
com a sua própria guerra, digo eu
e que se escreve para reconquistar a derrota
sofrida sempre que falámos longamente
- o que as empresas de telecomunicações de uma forma ou de outra agradecem

quinta-feira, 15 de julho de 2010

"Renascer". Susan Sontag.

Sou, há dois dias, leitor ávido dos diários e apontamentos de Susan Sontag (na edição de cá, à venda a partir de hoje) e, tal a paixão, já mais do que uma vez recorri à badana da capa para me certificar de que Susan nasceu já nos idos de 1933 e, se nem mesmo assim isto me conforma, volto à badana para confirmar que a seguir consta um ano de morte (2004). A leitura deste diário íntimo, escrito sempre somente para si própria, e logo este primeiro volume que reúne os escritos pessoais dos 14 aos 30 anos de idade, perturba-me pela invasão de privacidade e pela humanidade nua e fascinante de Susan – e aproxima-me intimamente dela também, desrespeitando eu desde já a formalidade do apelido. Não me lembro de algum outro livro que me perturbe como este desde o pegar e abrir com o arrepio de um flagrante a vasculhar a intimidade dos outros. E moro sozinho!

Vivo esta descoberta da história pessoal de Susan com o mesmo sentimento de realização da anterior descoberta, de há exactamente um ano, a cumprir-se hoje ou amanhã, e com as inevitáveis comparações, pela efervescência dos afectos.

A recolha cronológica abre aos 14 anos, com alíneas daquilo em que Susan acredita, como estas primeiras: “a) que não há um deus pessoal ou vida depois da morte” (e aqui eu logo me impressiono por a identidade pessoal ser transversalmente determinada por um património mitológico: deus e derivados); “b) que a coisa mais desejável no mundo é a liberdade de ser verdadeiro consigo próprio, por ex., Honestidade” (por esta me transporto para a problemática do ser, que é ser no outro); “c) que a única diferença entre os seres humanos é a inteligência” (coloco o meu parêntesis para relevar as questões de cultura, tendo eu a percepção do conceito de inteligência mais em termos de potência, pelo que a inteligência que se refere aqui não é inata nem determinada geneticamente); “d) que o único critério de uma acção é o seu efeito último em fazer o indivíduo feliz ou infeliz” (e faço desta o meu lema de vida, contornando esta alínea com um rectângulo vincado).

Do início e do fim do primeiro volume, outros exemplos de rectângulos e sublinhados sobre o pensamento, a vida privada e a formação de Susan (omitindo eu as minhas caixas que mais directamente derivam do meu viciado processo comparativo):
1948

“As ideias perturbam o equilíbrio da vida.”

“E o que significa ser-se jovem em idade e ficar subitamente desperta para a angústia e para a urgência da vida? (…) É impetuosidade, entusiasmo selvagem, imediatamente submergido num dilúvio autodepreciativo. É a cruel consciência da nossa própria presunção… É humilhação em cada palavra em falso, noites em branco passadas a ensaiar a conversa de amanhã e a torturarmo-nos pelas de ontem… uma cabeça baixa segura entre as mãos… é «meu deus, meu deus»… (em minúsculas, é claro, porque não há deus nenhum). (…) É um amargo e avassalador questionar de motivos…”

“(…) que cobardes são as pessoas que se envolvem, ou melhor, que se deixam envolver, por rotina, em relações estéreis – que vidas pútridas, sombrias e miseráveis elas vivem”.

“… A arte, então, aspira sempre a ser independente da mera inteligência…”

“… A linguagem não é apenas um instrumento, mas um fim em si mesma…”

“Leio novamente estes cadernos de apontamentos. Como são tristes e monótonos! Será que nunca conseguirei escapar deste interminável luto por mim própria? O meu inteiro ser parece tenso – expectante…”

1949

“Vou dedicar tempo todos os dias, entre as 2h00 e as 5h00, para escrever e estudar ao sol, e mais quanto tempo conseguir arranjar à noite – serei pacata, cortês e desenredada!”

“Ontem li Nightwood [de Djuna Barnes] – que notável prosa escreve ela – É assim que quero escrever – com profundidade e cadência – prosa pesada e sonante que beneficia aquelas ambiguidades míticas que são simultaneamente fonte e estrutura de uma experiência estética simbolizada pela linguagem –“

“Li a maior parte de Os Irmãos Karamazov e sinto-me subitamente freneticamente impura. Escrevi três cartas a Peter e Audrey cortando relações por completo e à mãe, semideclarando a minha repulsa pelo passado –“

“(…) Ele tem, penso eu, uma mente muito capaz – um dos melhores intelectos com que alguma vez estive em contacto – Embora seja absurdo imaginá-lo virgem, ainda assim tenho a certeza de que ele por regra é inteiramente casto, e sente um tremendo sentimento de culpa pelos seus raros lapsos no pecado…”

1958

“Não jantei. A ler A Consciência de Zeno, que me comove e impressiona profundamente.”
“O casamento é uma espécie de caça tácita em casais. O mundo todo em casais, cada casal na sua casinha, a tomar conta dos seus pequenos interesses e oprimidos na sua privacidadezinha – é a coisa mais repugnante do mundo. É preciso que nos livremos da exclusividade do amor casado.”

“O turismo é essencialmente uma actividade passiva. As pessoas colocam-se num determinado ambiente – à espera de ser excitadas, divertidas, entretidas. Não precisam trazer nada para esta situação – a envolvência é suficiente. Turismo é tédio.”

“P persuadiu-me também a esta noção de amor – que uma pessoa pode possuir outra pessoa, que podia ser uma extensão da personalidade dele e ele da minha, como David seria de nós os dois. Amor que incorpora, que devora a outra pessoa, que corta os tendões da vontade. Amor como imolação do eu.”

1959

“Os orgasmos das mulheres são mais profundos do que os dos homens. «Toda a gente sabe isso.» Alguns homens nunca têm um orgasmo, ejaculam entorpecidos.”

“Foder ou ser fodida. A mais profunda experiência – mais arrebatadora – é ser fodida. O mesmo se aplica a ficar por cima ou por baixo. Durante anos I[rene] não conseguiu ter um orgasmo ficando por baixo, porque (?) ela não podia aceitar a ideia de se entregar completamente, de ser «possuída».”

“Judeus Hebraico: haf (colher), Mash heh (beber) – substantivo, yada (conhecer – sexualmente) – verbo, por exemplo, fazer sexo”

“Kafka: «A partir de um determinado ponto, já não há retorno. Este é o ponto que tem de ser alcançado.»

“Resultado de autoconsciência: actores e público são o mesmo. Eu vivo a vida como um espectáculo para mim própria, para a minha própria edificação. Vivo a minha vida mas não vivo nela. O instinto para acumular nas relações humanas…”

“O meu desejo [Susan Sontag escrevera primeiro «necessidade», depois riscou) de escrever está relacionado com a minha homossexualidade. Eu necessito da identidade como uma arma, para igualar a arma que a sociedade tem contra mim.”

“… Até agora tenho sentido que as únicas pessoas que eu podia conhecer em profundidade, ou verdadeiramente amar, eram duplicados ou versões da minha desgraçada pessoa. (Os meus sentimentos intelectuais e sexuais sempre foram incestuosos.)”

1960

“Stendhal sobre comportamento social ou arte (?): «Cria um impacto, depois parte rapidamente.»”

“I: Sabes porque te custa tanto sobreviver? Tens andado sem gasolina. S: Como? A gasolina é a honestidade? I: Não, honestidade é o cheiro a gasolina.”

“Durante vários séculos a.C. alguns templos gregos eram mantidos como retiros, onde aqueles que estavam emocionalmente perturbados podiam recuperar numa atmosfera calma e descansada («terapia de ambiente»)”

“É importante ficar menos interessante. Falar menos, repetir mais, guardar os pensamentos para a escrita.”

“Não sejas bondosa. Bondade não é uma virtude. Sê má para pessoas que não são bondosas contigo. É tratá-las como inferiores, etc.”

“Na América, o culto da popularidade – querer ser amado por todos, incluindo por pessoas que se detesta”

“Pessoas que têm orgulho [Susan Sontag desenhou uma caixa em torno desta palavra] não despertam em nós o X. Elas não imploram. Não é preciso preocuparmo-nos em não as magoar. Elas excluem-se do nosso pequeno jogo logo desde início.”

“Fúria reprimida é uma fonte de depressão. (I. diz que o pai dela, um homem de grandes acessos de raiva, nunca esteve deprimido.)”

“A vontade. A minha hipostasiação da vontade como faculdade separada reduz o meu compromisso com a verdade. Na medida em que o respeito pela minha vontade (quando esta entra em conflito com o meu discernimento) me faz negar o meu intelecto.

E tantas vezes que eles têm entrado em conflito. Esta é a postura base da minha vida, o meu kantismo fundamental.

Não admira que o meu intelecto esteja silencioso + lento. Na verdade, eu não acredito no meu intelecto.

A noção de vontade e determinação tem vindo muitas vezes fechar o fosso entre o que digo (digo o que não sinto – ou sem pensar nos meus sentimentos) e o que sinto.

Assim, eu determinei o meu casamento.

Eu determinei a custódia de David.

Eu determinei Irene.

Projecto: destruir a determinação.”


1961

“Não sou boa pessoa.

Dizer isto 20 vezes por dia.”

“Há alguns anos apercebi-me de que ler me punha doente, que eu era como uma alcoólica que ainda assim sente uma ressaca depois de cada bebedeira. Depois de uma hora ou duas a folhear livros e ver estantes numa livraria, sentia-me dormente, impaciente, deprimida. Mas não sabia porquê. E não me conseguia afastar dos livros.

- Também, a necessidade de dormir após um acesso de leitura (especialmente se estivesse a ler vários livros) reflecte isto (eu costumava dar-lhes a volta – sem compreender o que sentia – e ler desta forma gananciosa, à noite, com vários livros ao lado da cama, para conseguir adormecer).

“O medo de envelhecer nasce do reconhecimento de que não se está a viver agora a vida que se deseja. É equivalente a uma noção de abuso do presente.”

1962

“Os judeus falam principalmente dos seus «direitos» (em vez de falarem daquilo que querem).”

“(…) Dar aulas para mim é masturbação intelectual”

“A razão por que eu não sou boa na cama (que ainda não «floresci» sexualmente) é porque eu não me vejo como alguém que pode satisfazer outra pessoa sexualmente. – Não me vejo como uma pessoa livre. (…) Atraio a minha própria infelicidade, porque se torna evidente à outra pessoa que eu estou a tentar. Por detrás do «sou tão boa, que até dói” está: “Estou a tentar ser boa. Não vês como é difícil. Tem paciência comigo.»”

1963

“Perguntar: Esta pessoa desperta alguma coisa boa em mim? E não: Esta pessoa é bela, boa, valiosa?”

“Trabalho = estar no mundo

Amar, ser amada = apreciar o mundo (mas não estar nele)

Desamor = achar o mundo insípido, inanimado

Amar é a mais alta forma de avaliar, de preferir. Mas não é um estado físico”

sexta-feira, 9 de julho de 2010

dois

dois estranhos de mãos dadas
rodam trocos na roda da fortuna
ansiando lhes calhe o sentido da vida

mas se calhar
se calhar
não saberão para que serve

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Da vingança

"Vou fazer aqui uma pausa para considerar a palavra "revenge", "vingança", que, segundo o Oxford English Dictionary, deriva do latim "revindicare". E "revindicare" deriva de "vindicare", que significa "justificar", ou "resgatar" ou "libertar", ou "emancipar", acção pela qual se libertava um escravo. Por conseguinte, vingarmo-nos de alguém é relibertarmo-nos, porque antes de efectuarmos a vingança não somos livres. O que é que nos mantém na escravidão? A nossa obsessão com o nosso próprio ódio pelo outro: o nosso próprio espírito vingativo. Sentimos que não o podemos sacudir a não ser através de um acto de vingança. O objectivo que precisa de ser estabelecido é um objectivo específico, e o tipo de dívida que não pode ser pago com dinheiro é uma dívida psíquica. É uma ferida na alma.
Os vingadores e aqueles que os vingadores querem matar ou punir são como credores e devedores. Surgem aos pares. São unha com carne. E daqui até à teoria junguiana da Sombra vai apenas um passo.
Em narrativas que envolvem um ódio irracional e obsessivo, especialmente por parte de uma pessoa que ainda não se conformou com a sua própria Sombra. A Sombra é o nosso lado negro, o repositório de tudo o que há em nós de que nos sentimos envergonhados e de que preferíamos não tomar conhecimento, e também das qualidades que declaramos desdenhar, mas que na realidade gostaríamos de possuir. Se não tivéssemos reconhecido essas coisas acerca de nós próprios, provavelmente iríamos projectá-las noutra pessoa qualquer ou noutro grupo, desenvolvendo um ódio irracional por essa pessoa ou por esse grupo."

"O lado sombrio". In Desforra - a dívida e o lado sombrio da riqueza, Margaret Atwood (Bertrand, Março de 2010).

Dos impostos

"Só para recordar: o imposto sobre o rendimento começou na Grã-Bretanha em 1799 para financiar as Guerras Napoleónicas. Nos Estados Unidos, começou em 1862 para apoiar a Guerra Civil. No Canadá, em 1917, os rendimentos começaram por ser tributados como medida temporária para financiar a Primeira Guerra Mundial. Os impostos são como lapas: uma vez qye se agarram, é muito difícil vermo-nos livres deles. As guerras às quais supostamente se destinam os impostos começam e acabam, mas os impostos continuam. Bom, é melhor do que impostos sobre as janelas, ou sobre a barba, ou sobre os solteiros, impostos que, todos eles, também já tiveram o seu tempo.
É notável vermos quantas vezes a dívida assumida de serviços em troca do imposto em dólares dos cidadãos é esquecida pelos Governos em geral. E uma vez gasto o dinheiro, as pessoas não têm meios para recuperarem as somas que foram obrigadas a emprestar, visto não serem do exército. Numa democracia, podemos depor um líder impopular votando noutra pessoa. Numa tirania, podemos arriscar um golpe armado ou uma revolução popular. Mas em ambos os regimes, mesmo com a vitória nas eleições ou com êxito no golpe ou no levantamento, continuaremos sem dinheiro. Na pior das hipóteses, as crianças continuarão a morrer à fome e/ou ficarão sem instrução, a fábrica de potabilização de água continuará por construir, e o nosso dinheiro irá parar a uma conta bancária na Suiça, e o nosso ex-tirano estará a bronzear-se na Riviera, rodeado por muros altos e por um grupo de dispendiosos guarda-costas. Ou, numa democracia, o nosso dinheiro sumir-se-á nas mangas dos compadres políticos do nosso ex-líder, num molho de contratos insustentáveis e supervalorizados, e esse ex-líder irá aquecer a cadeira de meia dúzia de gratos conselhos de administração, longe dos jornalistas loucos. Por outro lado, se as coisas ficarem bastante caóticas e houver desordens no ar talvez haja a hipótese de desfilarmos pelas ruas com a cabeça de alguém enfiada num pau, gritando: "Acabou o baile!" No entanto, embora seja satisfatório como acto de vingança, trata-se de uma excitação passageira e não servirá para nos restituírem o nosso dinheiro desaparecido."

"O lado sombrio". In Desforra - a dívida e o lado sombrio da riqueza, Margaret Atwood (Bertrand, Março 2010).

domingo, 4 de julho de 2010

giratórica

como se acham limites no espaço circular
e giratório?

limito o sorriso enquanto te voltas
para a roda do silêncio

limite

canto-te um limite e volto a sorrir
dos rios que entupiam as coxas das pedras
com águas tingidas nos dorsos
de lodo, as nuvens pairando no céu clandestino
o sol perpassava por chagas obscenas
do manto formado de clara neblina
sobre as flores contraídas
soltando espasmos
recostadas em camas de luz junto às urtigas
ardiam-lhes e a ti os poros da pele
sublimada, eu mordendo-te
escamas de cana madura
enquanto tolhida me chamavas de amor e arrependimento
ciente de que nos servimos da sabedoria
mais para evidenciar o erro
do que para subtraí-lo

a linguagem das pedras




a complexidade da comunicação
diga-se o viver
o tempo comum
é trama da linguagem
pela utilização de unidades de medida diferentes e variáveis
desde logo a noção própria de tempo
e as outras que nos declaram únicos
a distância
a profundidade
a intensidade
claro que para ti nada disto interessa
quando mexes numa tela
as medidas que há entre a chegada do teu dedo a uma pedra suspensa
são as mesmas do teu toque na mão embaraçada que a lançou

observas uma pedra
então percebo
que em ti se demarca representação do que se vê

demoras-te a olhá-la e enquanto isso
descubro o amor
porém o meu amor não tem pertença
e o teu pertence ao que a pedra te reflete

percebe-se o amor no amor dos outros
como herança

persigo o olhar das figuras, mas
por mais que possa andar
sei que muito mais me afasto e atolo
em pedra ensopada por bica de lágrimas

no desconforto da substância fronteiriça
agitas um brando desconsolo
e comoves as fissuras do teu sopro:
ao longe
o vento entoa teu grito
enquanto mirrada na cratera, a figura
arrefece o sangue
mesmo que berre
na linguagem desterrada das crateras do seu rosto


Misto s/ tela: "Não tenhas medo porque os medos têm medo de ti - por que sorris?", Mirtilo Gomes (http://www.bailaolopes.com/)

sábado, 3 de julho de 2010

hipoteca

este é o meu último poema de amor
acabo hoje todos os poemas
de amor são os últimos porque
todos os poemas de amor são golpes violentos
- lâminas em sangue, caídas depois de vincadas
as linhas das mãos -
a vingança redige todos os poemas

este é o meu último poema laminado
e hoje deixa de ser meu
não tenho nada, as mãos exangues
pago uma renda para morrer todos os meses
existo por contrato
e todos os meus gestos, os meus passos
as perguntas, os papéis, a vingança, o amor-
-próprio
ficaram registados em teu nome

pago o resgate morrendo cada dia um dia mais
que todos os outros
no silêncio que é o fio e o fim do poema
da vingança, do amor
as últimas coisas

este é o meu último poema de amor
que acaba assim:

do tédio

"Os cientistas afirmam que os ratos de laboratório, se fossem privados de brinquedos ou da companhia de outros ratos, dariam a si próprios dolorosos choques eléctricos, preferindo isso a suportarem um tédio prolongado. Mesmo estes choques eléctricos como tortura auto-infligida poderiam oferecer algum prazer, ao que parece: a antecipação do tormento é em si mesma excitante, e depois há a emoção que acompanha um comportamento de risco. Muito mais importante, porém, os ratos farão quase tudo para criarem acontecimentos para si próprios num tempo-espaço que, de outra forma, estaria privado de acontecimentos. É o que se passa com as pessoas: não só gostamos dos nossos enredos, como precisamos dos nossos enredos e, até certo ponto, somos os nossos enredos. Uma história-da-minha-vida sem uma história não é uma vida. (...) Tal como os ratos e os choques eléctricos auto-infligidos, preferíamos ter alguma coisa dolorosa a acontecer-nos do que absolutamente nada a acontecer-nos."

"A dívida como enredo", in Desforra - a dívida e o lado sombrio da riqueza, Margaret Atwood (Bertrand Editora, Março de 2010).

sexta-feira, 2 de julho de 2010

oposição e conservadorismo

"Poderíamos dizer que a vida é sempre - intrinsecamente - uma autocrítica. Mas [Paul] Valéry parece sugerir que a vida moderna acelerou esta crítica a tal ponto que a realização do objectivo anteriormente perseguido desacredita e ridiculariza a necessidade (denunciando a sua modéstia imperdoável), em vez de a satisfazer. Podemos dizer que quando a satisfação das necessidades se torna uma adição, deixa de haver montante de satisfação capaz de continuar a satisfazer. A partir de um certo limiar crítico de velocidade, a satisfação torna-se inconcebível - e então é a aceleração em si própria, mais do que a acumulação de vantagens, que se torna alvo da procura. Em circunstâncias assim, a oposição entre conservadorismo e criação, preservação e crítica, soçobra. (A implosão da oposição é muito adequadamente significada pela ideia de reciclagem, que combina a preservação com a renovação, a rejeição com a afirmação.) Ser conservador é manter o ritmo da aceleração. Ou, melhor ainda: manter, preservar a tendência da aceleração no sentido de se auto-acelerar..."