segunda-feira, 30 de agosto de 2010

"Rumo a um saber sobre a alma". ("A metáfora do coração e outros escritos", Maria Zambrano, Assírio e Alvim, 2000).

“«Tudo passa» seria o grande consolo quietista, se nós não passássemos igualmente, se com o tempo que passa não passasse também a nossa própria vida. Agarrando-nos à verdade, à nossa verdade, associando-nos ao seu descobrimento por a ter acolhido no nosso interior, por ter harmonizado a nossa vida com ela, enraizando-a no nosso ser, sentimos que o nosso tempo não passa, pelo menos, em vão. Algo do seu passar fica, como no fluir da água no rio, que passa e fica. «Tudo passa», corre a água do rio mas o álveo e o próprio rio permanecem. Mas é preciso que haja álveo, e o álveo da vida é a verdade. […] E é um bem que a vida se nos precipite a correr, a fuga do simples permanecer físico a cair nos seios do tempo, a angústia de passar transforma-se em prazer de caminhante.”

“Há duas maneiras de reagir perante os pensamentos que são bocados ou parte de outro pensamento mais radical, ainda desconhecido; uma é permanecer insensível perante a verdade que eles assinalam; outra, dar conta, por uma sensibilidade nascida da necessidade que temos dessa verdade, de que está ali, e não poder, contudo, encontrá-la. É o conhecimento que dá a sede para nos agarrarmos à rocha sob a qual mana a água, sem poder desfazê-la para que saia à superfície.”

“Quantos saberes, resultado de uma vida de luta com as paixões, terão ficado no silêncio por falta de horizontes racionais onde acolher-se, por falta de coordenadas adequadas a que referir-se!”

“É um banho cósmico, uma imersão da alma com a vida. «As situações de máxima exaltação corporal trazem consigo um delicioso aniquilamento na unidade cósmica.» (Ortega y Gasset: Vitalidad, Alma, Espíritu.) A orgia é uma reconciliação da alma que sofre ao começar a sentir-se a si mesma, com a natureza; é uma chamada aos poderes cósmicos que o homem faz quando lhe doem as entranhas da sua vida. É um regresso às fontes originárias da vitalidade para se limpar das sombras do seu interior, de algo que começa a sentir como seu, aposento de silêncio e solidão.
Porque toda a solidão foi sentida num princípio como um pecado, como algo do qual se sente remorsos. Cada distância que o homem conquista em relação ao resto do universo cria-lhe uma solidão que ao princípio lhe infunde terror e remorso. E da solidão recém-conquistada, retrocede a abraçar-se com o que acaba de deixar.
Assim, a alma grega, quando começava a sentir-se separada do cosmos, socorre-se das celebrações de Elêusis e do culto a Dioniso, em busca de uma reconciliação, com a esperança de se livrar das suas dores; também com a alegria de quem se reencontra com as suas origens. Orgia, purificação, abandono por um momento das dores da solidão nascente.”

domingo, 22 de agosto de 2010

"A metáfora do coração (fragmento)." ("A metáfora do coração e outros escritos." Maria Zambrano, Assírio e Alvim, 2000)

“(…) a Filosofia mais pura desenvolveu-se no espaço traçado por uma metáfora, a da visão e da luz inteligível.”

“(…) E estas metáforas a que nos referimos não são os felizes achados da poesia ou da literatura, mas uma dessas revelações que estão na base de uma cultura, e que a representam. Maneira de apresentação de uma realidade que não pode fazê-lo de modo directo; presença do que não pode exprimir-se directamente, nem alcançar com o inefável, única forma em que certas realidades podem tornar-se visíveis aos torpes olhos humanos.

“[Metáfora] É a função de definir uma realidade inabarcável pela razão, mas propícia a ser captada de outro modo. E é também a sobrevivência de algo anterior ao pensamento, pegada num tempo sagrado, e, portanto, uma forma de continuidade com tempos e mentalidades passadas, coisa tão necessária numa cultura racionalista. E a verdade é que, nos seus momentos de maior esplendor, a Razão nada teve que temer perante estas metáforas a que podemos chamar fundamentais. Ou talvez, ao dizer cultura, tenhamos a imagem de uma unidade entre a mais pura razão e esses outros modos de conhecimento, entre os quais se destaca este das metáforas.”

“A razão é pura manifestação, é a própria comunicação. Pode ficar sem dizer, não por isso será menos comunicável. Um pensamento racional, uma Filosofia esotérica, é pura contradição. A Filosofia logo no seu começo foi a ruptura do Mistério. Assim parece sempre para os que são inclinados a um saber misterioso, saber superficial. E a própria Filosofia adquiriu consciência da sua superficialidade, que não é diferente da sua universalidade e da sua principal virtude: a da transparência. Mas o que primeiro sentimos na vida do coração é a sua condição de escura cavidade, de recinto hermético: Víscera; entranha. O coração é o símbolo e representação máxima de todas as entranhas da vida, a entranha onde todas encontram a sua unidade definitiva e a sua nobreza. […] Este abrir-se é a sua maior nobreza, a acção mais heróica e inesperada de uma entranha que parece de imediato não ser senão vibração, um sentir puramente passivo. Signo de generosidade porque indica que aquilo que primariamente é somente passividade – acusação – se transforma em activo. E é tão passivo que não deixa de o ser ao actuar, é o oferecimento daquilo que não tem outra coisa senão integridade. Suprema acção de algo que, sem deixar de ser interioridade, a oferece num gesto que parece que poderia anulá-la, mas somente a eleva. Oferece-se por ser interioridade e para continuar a sê-lo. E isto (interioridade que se oferece para continuar a ser interioridade, sem a anular) é a definição de intimidade.”

“Somente aquilo que constitutivamente é fechado pode ser a sede de uma intimidade; (…).”

“A profundidade impõe tanto e é tão misteriosa porque é o espaço que sentimos criar-se, pela acção de algo que está a ponto de trair o seu ser para oferecê-lo numa entrega suprema, como é toda a entrega daquilo que não se tem primariamente e se adquire para para entregá-lo a quem somente assim pode ir a quem o chama. O profundo é uma chamada amorosa. Por isso, toda a gruta atrai.”

A música do coração
Por ser o trabalho uma incessante condição de vida, não podem as entranhas chegar à palavra; porque toda a palavra é um corte e delimitação na realidade e somente quem pode separar-se da vida pela sua condição independente e impassível pode alcançá-la. Toda a palavra suspende o tempo e introduz descontinuidade na sua incessante continuidade. Por isso preserva do tempo. Nada de estranho pode ter que a Filosofia, que descobriu o pensamento, chegasse a vê-lo fora do tempo. Na realidade não chegou, mas começou, ao descobrir o pensamento - «noein parmeniano» - numa abstracção do tempo. É a condição do próprio pensamento que em sua forma genérica, a simples palavra, executa uma descontinuidade onde parecia não poder havê-la. Faz saltar a lei do tempo, que marcha igual a si mesmo.
Não assim as entranhas que continuam mergulhadas no tempo sem poder sair dele. E por isso não puderam chegar à palavra; por falta de vagar e independência; por impossibilidade de pôr uma pausa no seu trabalho. O seu domínio é o ritmo, como em toda a maquinaria. A música das máquinas atrai porque é imagem da música do coração. Música, pulsar que representa, nisto, também, o pulsar de tanta entranha surda; que soa por toda a mudez dos restantes que, se não se fizessem ouvir de alguma maneira, ficariam cheios de rancor. Pois o rancor nasce do que não consegue, trabalhando sempre, ser escutado.”

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

"Génese seguido de Constelações". António Ramos Rosa (Roma Editora, 2007)

Não podemos ter a certeza da nomeação
Entre o acto ou a coisa e a palavra há uma cesura intransponível
Vivemos paralelamente entre dois mundos como estranhos
e só a invenção pode constituir a fábula
de uma unidade que será sempre incerta ou futura ou improvável
Ou talvez possamos fazer um pacto com o inexprimível
e aceitar o insondável como um solo absoluto
e embalar-nos no silêncio ou no berço da nossa morte
Se uma adolescente expõe o seio diante de um espelho
e se deslumbra apaixonadamente e levemente beija a sua imagem
nenhuma palavra poderá dizer o frémito desse instante absoluto
mas é esse o desejo da palavra que procura um lábio
para sentir que ele é o mundo que desponta e o estremecimento do contacto
consigo própria no apaixonado círculo do seu movimento voluptuoso
Ela navega na solidão de imagem em imagem
para encontrar o outro para beijar nele a sua própria boca
e no seu sexo fecundar a ave subterrânea
das suas anelantes entranhas fustigadas pelo tufão do desejo

*

Quando uma mulher se despe numa clareira rodeada de arbustos
e sobre uma toalha se estende ao sol o seu desejo é ambíguo
porque não quer ser vista e ao mesmo tempo a sua pele estremece
sob um olhar ausente ou de alguém escondido entre a folhagem
Também a palavra se expõe e oculta no seu fulgor de lâmpada
alimentada pelo fogo obscuro que aspira à nudez solar
Ela inclina-se sobre a água para ver a sua imagem
com o olhar não dela mas de um outro que a move
para ser a presença pura no olhar de ninguém
e poderá ser um dia o de algum leitor que se deslumbra com a sua abstracta nudez
Sem esta duplicidade e sem este puro recato através do silêncio
ela não possuiria o frémito ideal da sua exposição
e seria opaca ou demasiado transparente sem os meandros cintilantes
que a tornam fugidia como um fio de mercúrio
e a sua nudez teria a consistência inerte
de uma pedra sem fogo e sem sal sem o focinho do desejo
Por isso o poema é uma mulher que se enrola na sua nudez
até ser tão redonda como redondo é o ser
com a sua língua bífida entre os lábios do seu sexo

*

O que não é ainda o que está para ser o que já está a ser
e que não sendo excede sempre em íntima dissonância
que perpetua o mundo para além de nós
e em nós abre uma fenda mas também um espaço neutro
em que a palavra poderá encontrar a rosa do possível
sobre o impossível solo que a nega e que a suscita
O que o ser mais deseja é a integridade de um sentido
que envolva o não sentido que o transponha numa lenta coluna
de existência reunindo a sede e a móvel nascente
que não existe senão no movimento dos passos sobre o deserto
para que a página se ilumine e a boca respire o azul do dia
Mas o poema é sobretudo o movimento do sono adolescente
em que o mundo não é mais que maresia cintilante
e o ritmo das esferas o rolar de uma bola de esterco que um escaravelho empurra

*

Há palavras que esperam que o branco as desnude
para se tornarem transparentes e vazias
A delicadeza da lâmpada é uma oferenda do olvido
a folha flexível é uma luva vegetal para a mão que oscila

Como o abdómen de uma adolescente
a página suscita a fértil fragilidade
de uma caligrafia que se apaga sobre os sulcos da neve
Aí aparece a graciosa metade
em que cintila o pólen da límpida abolição

Escrevo para ser contemporâneo das nuvens
para pertencer à pobre e nua pátria inerte
coberta pelo violento alfabeto dos cláxons
Escrevo para que se levantem os pássaros de areia
e ao pulverizarem-se espalhem a poeira do seu desaparecimento

terça-feira, 10 de agosto de 2010

As palavras transferidas. V - O mito do lugar

Entre o silêncio e o mito, as palavras transferidas:
na dicotomia da palavra, o mito agoniza e sobrevive
na narrativa do que só pode ser na sua negação.
Na essência do mito, o silêncio
resgata da matéria os remos
a declarar todo o luto inaceitável
para que seja luto.
Em ciclo, o silêncio resgata-se e implode
como hiato, de novo na palavra.
As quatro figuras celestes resolvem a deriva:
os lugares são constructo da atenção seletiva.
Então, sob vagas de ira e piedade,
a ilha submerge no tempo,
neste mar de ocultação e esquecimento.
Despedida é a palavra que prova os ventos
e, transferida, enraíza a terra luminosa
sempre em direção à matéria do silêncio:
as tuas mãos sobre os meus olhos
num jogo de crianças, conchas ternas
mostrando-me, vendados, a noite infinita;
desvendados, o lugar submerso
aonde não posso voltar.

sábado, 7 de agosto de 2010

"Rima Pobre - Poesia Portuguesa de Agora". Joaquim Manuel Magalhães (Presença, 1999), reproduzido no Prefácio a "Do Extermínio", de Jaime Rocha (Relógio d´Água, 2003).

"Como nunca gostei de revistas literárias, normalmente deito-as fora quando por azar me chegam às mãos, embora não sem antes as ter, perversamente, lido. Uma vez por outra, se vale significativamente a pena, faço um recorte e meto-o num livro. [...] Como não acredito em grupos ou gerações literárias, normalmente manobras tacanhas para que os outros reparem no que excepcionalmente apenas reparariam, como só me preocupo com obras que para mim valham individualmente por si mesmas e a outras se justaponham para formar o valor de uma tradição de inovações, os escritores amontoados em redor uns dos outros causam-me uma certa sufocação."

"O ornamento é a roupagem «a mais» da escrita poética e, para o que importa agora, do lirismo. Mas o ornamento tem muitos disfarces. Pode ser o epigonismo processual para que o triunfo literato fique mais assegurado; a repetição sem outra inventividade do já anteriormente feito pelo próprio autor; ou esse máximo ornamento que é o da poesia entendida como um manobrismo mundano e de aquisição de benesses. Isto é, tanto quanto uma questão retórica ou prosódica, o ornamento é a mais profunda falta de ética na figura do poeta.
O ornamento é, ao fim e ao cabo, tudo o que enfraquece um poema, não o deixando apenas com o impeto do inesperado ou a ventania da invenção sem quaisquer truques. Em resumo, e bastante comicamente, detecta-se nesses poetas que vivem do pedantismo para auferir cuidados sociais."

"(...) O sensorial ou o mundo ou a realidade, chamemos-lhe como quisermos, nunca são, na escrita, uma transposição. São uma idealização objectiva, um falso a erguer um verosímil, essa transformação do trabalho mimético por onde falam os sentimentos e as arquitraves dos poemas. Os olhos que vêem o visto num poema descrevem como se fossem olhos cegos. E, por essa cegueira - que exige o andaime da referência, da enumeração, da relação indecisa da palavra e do sentido - o leitor lê, aproxima-se, muitas vezes compreende e actua.
Porquanto o poeta não pode nunca acreditar na literatura quanto o leitor, para que o leitor possa acreditar no poder representacional das palavras. (...)"

"(...) Nada que venha das palavras o tempo e o espaço escutam: são eles que fazem as palavras escutar. Mas sabem que tal perscrutação - ou sabemos nós por eles - sobrevive nas palavras ideológica e psiquicamente feridas. Assim, o tempo e o espaço dizem ao poeta (e não ao contrário, como os naturalismos acreditam) que, sendo ele um padecedor deles mesmos, pode procurar, pela des/crença da escrita, permanecer como construtor de mundo (que de espaço e de tempo é, por pensamento ou acção, percebido)."

"(...) Através de sucessivos desabamentos (os ritmos), de sucessivas reconstruções (a retórica), dentro de uma fuga (após uma entrega) ao princípio de caos que repugna a quem não quer resvalar para as permissividades totalizadoras. Que dão o tom prescritivo de tanta poesia secundária. Pois que o poema visa a coesão, uma arquitectura premeditada. A qual pela leitura se acrescenta de interligações humanas, já não só verbais. De uma interioridade humana a uma exterioridade humana, o poema ronda o caos."

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

o poema é este

o poema é este
sentido é
norte e sul são gentios
bússola pai

naquele tempo dito isso
e isto dito assim
denota conotação bíblica como gostarias
e de seguida aludir às canções da missa
e da barba na espuma dos domingos
de manhã eu aleluia acordava
e vingava-me com ok computer
draconian times, razorblade suitcase
without you i´m nothing
(faltaram-me nevermind e mellan collie
faltam-me ainda
tenho de ver isso)

naquele tempo
não havia tempo dito isso
havia a gaveta do totoloto
a crucificação dos números
um saco com quarenta e cinco quadrados de esferovite
uma caneta com tômbola
o hábito do registo
a espera e o esquecimento do sorteio
espera e esquecimento, como tudo
o que se espera e de esperar se esquece
a procura da chave na ânsia de um três
a espera, o esquecimento e a ânsia, como tudo
o que se espera e de esperar se esquece, se acorda, se anseia
e na ânsia se espera

jogaste todas as semanas para te calhar
um ritual

naquele tempo
não havia tempo
para estarmos no mesmo tempo dito isso
havia a bicicleta
duas molas nas calças
para pedalar o domingo
dizerem-me que te viram por todo o lado
e no verão no muro do Berlim
à espera da festa dos baldes de água
às duas da manhã sobre a malta

amanhar a terra ao sábado
ir à lenha ou protestar a chuva
ainda bem, que assim eu não ia

sossegar a gata na hora da novela

naquele tempo
não havia tempo
para estarmos no mesmo tempo
a olhar o tempo dito isso
mas houve uma tarde derradeira
dois cornetos sentados no jardim do hospital
em silêncio olhando em frente
sorvendo o tempo unificado

o poema é este
sentido é
norte e sul são gentios
bússola pai

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

As palavras transferidas. IV - O complexo do mito

Entre a matéria e o mito, as palavras transferidas:
matéria, raso,
mito, experiência.
Tudo o que é de relação potencia ou comporta o mito.
As notícias ensinam os dois conceitos de tragédia:
fruição, inquietação,
com que produzimos e reproduzimos valores –
as propriedades míticas à hora certa:
uma cama suspensa foi avistada esta tarde
ao largo das Berlengas, quando
o tripulante sodomizava quatro gaivotas
que, agradecidas, o ajudaram a voar no lençol.
Boa noite, estas foram as notícias,
refogue-as com as outras surpresas e expectativas
no seu caldo habitual
pois não lhe será dado outro tacho.
E assim se cozinha e se serve uma mixórdia de mitos
consubstanciados
a barrar a matéria
para que nos voltemos sempre a ver de novo amanhã.

As palavras transferidas. II - O mito do eu

Entre o rosto e a mão, as palavras transferidas:
rosto, mão,
desolação e desejo.
De alguma forma (e se isto é forma),
todas as substâncias podem ser unidades míticas.
Despimos a forma
e o nu, o integral, é a sua abstração
complacente.
A desolação tem a forma do meu rosto
e o desejo tem a forma da tua mão.
Desolação, desejo,
rosto, mão,
a cama suspensa
por estas quatro figuras peregrinas
que procuro conhecer enquanto me transportam.
As palavras transferidas qualificam-nas:
despidas, podem agora ser deuses
num processo ilusório ad eternum
a fundir verdades complacentes,
ilusões, abstraídas na angústia,
no desvendamento de mim,
coberto pela forma da tua ausência.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

"Borges verbal". Jorge Luís Borges (org. Pilar Bravo e Mario Paoletti, Assírio e Alvim, 2002)

“Sustentar a seriedade essencial da poesia é (…) estar do lado de Aristóteles que, já o sabemos, escreveu que a poesia é mais verdadeira que a história; isto é, para mim, nos símbolos da poesia há uma verdade essencial e se essa verdade não existe, os símbolos não valem nada, são meros simulacros de símbolos.”

“A literatura é como uma biblioteca infinita, da qual cada indivíduo só pode ler umas páginas; mas talvez nessas páginas já esteja o essencial, talvez a literatura esteja a repetir sempre as mesmas coisas com uma acentuação, com uma modulação ligeiramente diferente.”

“Que coisa!, essa palavra «cosmética» tem a sua origem em «cosmos». O cosmos é a grande ordem do mundo e a cosmética a pequena ordem que uma pessoa impõe à sua cara. É a mesma raiz: cosmos = ordem.”

“Quando não estamos bem arranjados, sentimo-nos como uma espécie de vagabundos. A pessoa arranjada já pode aspirar à honra, à estima dos outros, talvez à inteligência também.”

“Somente se pode definir o que é abstracto: um polígono ou um congresso. Mas como definir o sabor do café ou essa tristeza agradável dos entardeceres, ou essa esperança sem dúvida ilusória, que se pode sentir de manhã. Definir é exprimir algo em outras palavras e essas outras palavras podem ser menos expressivas que o definido.”

“O essencial é indefinível. Como definir a cor amarela, o amor, a pátria, o sabor do café? Como definir uma pessoa que amamos? Não se pode.”

“Ao adormecer, cada um de nós esquece-se de si mesmo. E ao acordar recorda-se.”

“A literatura fantástica não é uma evasão da realidade, mas ajuda-nos a compreendê-la de um modo mais profundo e complexo.”

“A literatura que se chama existencial não insiste nas capacidades do homem mas nas suas fraquezas, e isso é imoral.”

A extrema-direita e a extrema-esquerda são igualmente partidárias do Estado e da sua intromissão em cada instante da nossa vida.”

“O humor britânico procede da intuição de uma verdade ou, se não receamos as palavras altissonantes, de uma sabedoria. O engenho francês costuma ser verbal. E isso que se chama «o engenho espanhol» é uma forma de trocadilho; procede de acasos fonéticos.”

“Alguém escreveu que era «um lugar-comum» de Ibsen ele ter dito que cada um deve viver a sua vida. É um lugar-comum porque a ideia de Ibsen teve êxito, mas realmente Ibsen em Casa de Bonecas apresentou o caso de uma mulher que abandona o marido e os filhos não porque tem um amante, isso teria sido aceite pela sua época, mas porque não quer ser um objecto de luxo, quer viver a sua própria vida. Essa foi uma ideia tão revolucionária, com tanto êxito que agora é um lugar-comum isso de viver a própria vida; e daí o perigo do drama com tese: se a tese fracassa, o drama é inútil, e se a tese tem êxito o drama é supérfluo.”

“Sempre que se pergunta a alguém que livro levaria para uma ilha deserta, responde que o D. Quixote. Mas acontece que, se se tem umas férias de Verão de vinte dias, ninguém o leva…”

“Não gosto [da Ilíada]. A sua personagem central parece-me um parvo. Quero dizer que não se pode admirar um homem como Aquiles -, não? Um homem continuamente mal-humorado, zangado porque as pessoas foram injustas com ele, e que acaba por enviar ao pai o cadáver do homem que matou.”

“(…) Se uma gata parisse dentro de um forno -, você chamaria ao que ela parisse gatinhos ou pães?”

“Descobri com horror que os adjectivos se conjugam, que mudam conforme se referem a um facto presente, um facto passado ou um facto futuro. E isso aprende-o uma criança japonesa sem se aperceber de que está a aprender alguma coisa muito, muito complexa.”

“O meu poema “Limites” (Para sempre fechaste alguma porta / e há um espelho que te aguarda em vão…) corresponde a uma experiência que toda a gente teve: o facto de que, quando se chega a uma certa idade, executa muitos actos pela última vez. Eu cheguei a sentir isso. Eu era um velho e, ao olhar a biblioteca, pensei: quantos livros há que eu li e não voltarei a ler; e também a ideia de que quando nos encontramos com uma pessoa equivale a uma despedida possível, já que talvez não voltemos a vê-la. Isto é: estamos a dizer adeus às pessoas e às coisas continuamente, e não sabemos.”

“Quando morre a mãe, todos os filhos sentem que a aceitaram como se aceita a Lua ou o Sol ou as estações do ano, e que abusaram dela. Antes, creio que não se dá por isso.”

“A história é a nossa imagem da história. E essa imagem melhora sempre, tende para a mitologia, para a lenda. Além disso, cada país tem a sua mitologia privada; a história de cada país é uma carinhosa mitologia que talvez não se pareça em nada com a realidade.2

Enamorei-me, às vezes, de pessoas culturalmente muito limitadas e essas relações foram desastrosas. (…) Aqui posso recordar Nietzsche, escritor que não é da minha devoção. Disse: «O matrimónio é uma longa conversa.»”

“Todas as palavras foram, alguma vez, um neologismo.”

“Não me lembro se há paisagens no Quixote. Não sei se chove alguma vez no romance, creio que não. O escritor documentado é uma invenção do romance francês do século XIX. Esse escrúpulo corresponde a Flaubert e não a Cervantes.”

“[Os países] são superstições ou convenções. O que é real são somente os indivíduos. Por isso toda a história universal é falsa. […] Infelizmente para os homens, o planeta foi dividido em países, cada um provido de lealdades, de queridas lembranças, de uma mitologia particular, de direitos, de agravos, de fronteiras, de bandeiras, de escudos e de mapas. Enquanto durar este arbitrário estado de coisas, serão inevitáveis as guerras.”

“Talvez por um princípio de consciência literária, desde menino preferi dizer pai e mãe em lugar de papá e mamã, palavras ridículas, oficiais e frias. É impensável uma oração que diga: «Papá nosso que estais nos céus…».”

“Conheço muitas pessoas que foram psicanalisadas e estão a vigiar-se dia e noite. Por exemplo, uma senhora (de cujo nome não quero lembrar-me): se me encontro com ela e lhe pergunto como se sente, responde-me: «Hoje sinto-me deprimida» ou «Hoje sinto-me menos deprimida»… (…) É uma ciência totalmente hipotética. Como pode basear-se uma ciência no que lembra ou deixa de lembrar uma pessoa? (…) É uma ciência baseada na vaidade das pessoas. Toda a gente gosta de falar de si mesmo e que o levem a sério.”

“Os meus sonhos, as minhas fantasias são tão reais como a própria realidade. Creio sinceramente que com o decurso do tempo o presente torna-se passado, o passado transforma-se em memória e a memória é sempre inventiva. Ao fim e ao cabo, tudo é mitológico e místico. E bem, decidi ser místico a partir de agora.”

“Não sei até que ponto um escritor pode ser revolucionário. Antes de mais, está a trabalhar com o idioma, que é uma tradição.”

“Qualquer pessoa pode pôr-me numa cadeia, pode desterrar-me ou pode matar-me, mas fazer-me sofrer intimamente isso apenas podem fazê-lo as pessoas a quem eu quero. Se eu quero muito a uma pessoa, e essa pessoa não me quer, destrói-me tanto mais quanto mais eu a amo.”

“Agora as pessoas não tendem a ascender, mas antes todos a cair, a descer na escala social. Creio que todo o país está em decadência, a decair. E, como o espaço é infinito, certamente continuaremos a cair indefinidamente.”

“Apollinaire disse que o tempo da rima tinha passado. Tinha razão quanto a ele mesmo, posto que ele podia fazer admiráveis versos livres. (Mas) se Victor Hugo tivesse dito o mesmo tinha-se enganado, porque ele podia rimar de uma maneira que me parece muito bela. As teorias […] dependem do génio de cada poeta. É inútil discutir uma teoria estética. É preciso ver que objecto ela serviu.”

“A vingança é inútil e é cruel e absurda. A única vingança verdadeira é o esquecimento. E o perdão.”

(Os destaques em bold foram colocados por mim, substituindo deste modo os verbetes originais, que não aprecio.)

domingo, 1 de agosto de 2010

"Meu único, grande amor: casei-me!". Manuela Gonzaga (Bertrand, 2010)

"-Onde é que você aprendeu a dançar o tango? (...)
- Hãnn, por aí. (...)
- Sim, mas... com quem? (...)
- Hãnnn, aprendi a dançar a sério - e tudo quanto há para dançar - com os meus amigos moçambicanos, cabo-verdianos, angolanos, guineenses e brasileiros. Também sei sambar. E rumbas e salsas é comigo. (...)
- Não seja irritante. Diga lá, onde aprendeu a dançar o tango e com quem?
- Com os homens das obras.

(...)

- Ah, faneca - suspirou agarrado a Pikuxa e a pensar em Vera.

(...)

Enfim, como dizia o outro, tudo isto é... tango!"

"O último dos padrinhos". Mario Puzo (Bertrand, 2009)

"- Porque os escritores não são os livros que escrevem - respondeu Cláudia. - Os livros são destilações do melhor que há neles. Um escritor é como a tonelada de rochas que é preciso esmagar para obter um pequeno diamante, se é isso que se faz para conseguir um diamante."

"Rosebud - fragmentos de biografias". Pierre Assouline (Bertrand, 2009)

"Um quadro, como um poema, nunca está terminado. Ele está precisamente abandonado. A obra suspensa apela à sua continuação. Não tem fim. A loucura é a obra nesta lógica, a de um artista com o espírito corroído pela dúvida."

"Amor Líquido". Zygmunt Bauman (Relógio d´Água, 2006)

“Se lhes perguntassem, os habitantes da Leónia, uma das Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino, diriam que a sua paixão é “desfrutar de coisas novas e diferentes”. De facto. A cada manhã, “vestem roupas novas em folha, tiram latas fechadas do mais recente modelo de frigorífico, ouvindo jingles recém-lançados na estação de rádio mais quente do momento”. Mas a cada manhã “as sobras de Leónia de ontem aguardam pelo camião do lixo” e cabe indagar se a verdadeira paixão dos leonianos não seria na verdade “o prazer de expelir, descartar, limpar-se de uma impureza recorrente”. Caso contrário, por que seriam os varredores de rua “recebidos como anjos”, mesmo que a sua missão fosse “cercada de um silêncio respeitoso” (o que é compreensível: “ninguém quer voltar a pensar em coisas que já foram rejeitadas”)?
Pensemos…
Será que os habitantes do nosso líquido mundo moderno não são exactamente como os de Leónia, preocupados com uma coisa e falando de outra? Garantem que o seu desejo, paixão, objectivo ou sonho é “relacionar-se”. Mas será que, na verdade, não estão principalmente preocupados em evitar que as suas relações acabem congeladas e coaguladas?”

“Como apontou Ralph Waldo Emerson, quando se esquia sobre gelo fino, a salvação está na velocidade. Quando se é traído pela qualidade, tende-se a procurar a desforra na quantidade. Se “os compromissos são irrelevantes” quando as relações deixam de ser honestas e parece improvável que se sustentem, as pessoas tendem a substituir as parcerias pelas redes. Feito isso, porém, assentar torna-se ainda mais difícil (e adiável) do que antes: agora já não se tem a habilidade que faz, ou poderia fazer, a coisa funcionar. Estar em movimento, antes um privilégio e uma conquista, torna-se uma necessidade.”

"A volta ao mundo em oitenta dias". Jules Verne (11x17, 2010)

No primeiro capítulo - “Em que Phileas Fogg e Passepartout mutuamente se aceitam, o primeiro na qualidade de amo, o segundo na de criado” – ficamos a perceber que estes dois saberão como resolver o tédio de uma longa viagem de balão.

No segundo capítulo – “Em que Passepartout se convence, finalmente, de que achou o seu ideal” – entendemos a importância de se chamar Passepartout.
No terceiro capítulo – “Trava-se uma conversa que poderá custar a cara a Phileas Fogg” – daremos conta da flexibilidade exigida às personagens, determinante no capítulo seguinte – “Em que Phileas Fogg faz pasmar o seu criado Passepartout”.
A aventura prolonga-se até ao último round, “Em que se prova que Phileas Fogg nada ganhou na sua viagem à roda do mundo, a não ser a felicidade”.

"A interpretação do crime". Jed Rubenfeld (11x17, 2009)

“A felicidade não tem segredos.

Os homens infelizes parecem-se todos. Algum desgosto há muito sofrido, um desejo negado, um golpe no orgulho, uma reluzente centelha de amor extinta pelo desprezo – ou pior, pela indiferença -, agarram-se a eles, ou o inverso, e, com isso, esses homens vivem envoltos no manto dos dias passados. O homem feliz não olha para trás. Não olha para a frente. Vive no presente.
É aqui, porém, que reside a dificuldade. Há algo que o presente nunca pode dar: sentido. Os caminhos da felicidade e do sentido não são iguais. Para chegar à felicidade, um homem precisa apenas de viver no momento – precisa apenas de viver para o momento. Já se quiser sentido – o sentido dos seus sonhos, dos seus segredos, da sua vida -, um homem precisa de reabitar o seu passado, por muito sombrio que este seja, e viver para o futuro, por muito incerto. É assim que, à nossa frente, a natureza exibe felicidade e sentido, insistindo unicamente para que escolhamos entre eles.
Para mim, sempre escolhi sentido.”

"Estado Civil - diário de uma crise". Pedro Mexia (Tinta-da-China, 2009)

"DEMOGRAFIA
Claro que há «muitas mulheres no mundo». Mas isso é um comentário estritamente sexual."

"Is OK
O ódio por nós mesmos é normal. Eu também tenho ódio por mim mesmo. É normal. O que é mau é não sabermos como sair dele, não sabermos como geri-lo. Se conseguirmos entender claramente o seu mecanismo, o ódio por nós mesmos é, na realidade, uma coisa boa, porque nos ajuda a compreender os outros. (Orhan Pamuk, (...))"

"O MEU MELHOR
Em quase todas as derrotas, não me empenhei o suficiente. E houve até derrotas que procurei, de tanta falta de empenho. Intempestivo e angustiadamente displicente, como se isso afinal de contas não fosse importante. Mas quando damos tudo, como no poema de Yeats («Never give all the heart»), e falhamos, quando damos o nosso melhor e o nosso melhor não chega, é impossível continuar tudo como dantes, não extrair conclusões, não tomar decisões, não ter algumas dúvidas que são certezas. Quando o nosso melhor não chega, nada disto vale a pena."

"AFTERIMAGE
É como aquela reacção óptica que em inglês se chama «afterimage» (persistência retiniana, em português). Quando olhamos fixamente alguma coisa (digamos, uma lâmpada acesa) e depois fechamos os olhos, surge uma imagem ou um brilho no interior dos olhos fechados durante uns segundos. É o brilho da imagem que já perdemos."

"ISOLACIONISMO
Sempre detestei o isolacionismo («prática oficial de um Estado ou Nação em fechar-se aos demais, quer económica, quer politicamente»). A minha vida durante treze anos merece muitos epítetos (muitos deles justamente ridículos), mas nunca o de «isolacionista». Bem pelo contrário. Mas pronto, já chega, depois de algumas guerras desastrosas é altura de não ir a guerra nenhuma, uma espécie de pacifismo instrumental, profundamente hipócrita mas seguro. Depois de uma guerra recente baseada em invenções e informações falsas, há que ter alguma vergonha na cara. Pouco importam os «desejos profundos»: o que interessa é a «prática oficial». Manda quem pode, obedece quem deve; mesmo que um e outro sejam a mesma pessoa."

"A arte da guerra para mulheres". Chin-Ning Chu (Chá das Cinco, 2010)

“Rejuvenesça. Há quatro estações por uma razão. No inverno, a Terra descansa para se preparar para o renascimento da primavera. As árvores perdem as folhas, os ursos hibernam. Felizmente os ursos não são encorajados a participarem em cursos de formação motivacional. De outra forma, com a sua recentemente descoberta “sabedoria”, mesmo antes de o sono profundo começar a fazer efeito, diriam para si mesmos: “Levanta-te, levante-se, seu malandro preguiçoso.” Dividido em obedecer aos ritmos naturais comportar-se “como é esperado”, quando a primavera finalmente chegasse, os pobres ursos estariam exaustos e incapazes de sobreviver.”

“Numa tentativa para nos mantermos umas às outras em baixo, parece que as mulheres são vítimas do que chamo a “mentalidade do caranguejo”.
Quando se cozinha caranguejos, não temos de colocar a tampa na panela a ferver porque os caranguejos impedem-se uns aos outros de sair. Quando um caranguejo se aproxima do topo e tenta sair, outro caranguejo irá naturalmente puxá-lo para baixo na sua própria tentativa de fugir. Por conseguinte, todos os caranguejos se aniquilam colectivamente.”