quinta-feira, 16 de setembro de 2010

"Dois fragmentos sobre o amor." In A Metáfora do Coração e outros escritos

“No ilimitado espaço que, na aparência, a mente de hoje abre a toda a realidade, o amor tropeça com barreiras infinitas. E tem de justificar-se e dar razões sem fim, e tem de resignar-se finalmente a ser confundido com a multidão de sentimentos, ou dos instintos, se não quer esse lugar escuro da «libido», ou ser tratado como uma doença secreta, de que deveríamos libertar-nos.”

“Vida na negação, é a que se vive na ausência do amor. Quando o amor – inspiração, sopro divino no homem – se retira, não parece perder-se nada de momento, e até parecem emergir com mais força e claridade coisas como os direitos do homem emancipado. Todas as energias que integravam o amor ficam soltas a vaguear por sua conta. Como sempre que se produz uma desintegração, há uma repentina liberdade, em verdade pseudo-liberdade, que depressa se esgota.
A partir do Romantismo, em que o amor ascendeu arrebatadamente à superfície da vida, o amor não deixo de ter os seus servidores, os seus defensores. São sobretudo os poetas, lembrando um pouco a situação antiga, quando somente os poetas o sustentaram à margem da cidade e quase da lei. Contudo, hoje ninguém ousa formular, nem sequer como hipótese, nenhuma lei contra ele; nenhuma cidade lhe fecha as suas portas; pelo contrário, tudo parece que lhe está aberto, até as leis… Mas, na realidade, as portas estão francas para os seus sucedâneos, para tudo o que o suplante. A rebeldia dos poetas, seus irredutíveis servidores, cai numa espécie de vazio; aos seus delírios não se opõe nenhuma resistência, a forma mais clara da pseudo-liberdade de que gozamos.
E é que todas as forças contrárias ao que outrora respondera ao nome de «humanismo», tomaram hoje o seu rosto, a sua figura, o seu próprio nome. O humanismo de hoje costuma ser a exaltação de uma certa ideia do homem que nem sequer se apresenta como ideia, mas como simples realidade: a realidade do homem, sem mais que renúncia à sua ilimitação; a sua aceitação de si mesmo como estrita realidade psicológico-biológica; a sua afirmação em coisa, uma coisa que tem determinadas necessidades justificadas e justificáveis. De novo o homem se acorrentou à necessidade, mais agora por decisão própria e em nome da liberdade. Renunciou ao amor em proveito do exercício de uma função orgânica; trocou as suas paixões por complexos.”

“Ao amor de nada lhe serve aparecer sob a forma de uma paixão arrebatadora; é como se, cuidadosamente, alguém tivesse efectuado uma análise e extraísse o divino e avassalador que nele existe para o deixar transformado num acontecimento, no exercício de um direito humano e nada mais. Num episódio da necessidade e da justiça.
O amor, quando não é aceite, converte-se em némesis, em justiça, é implacável necessidade de que não há escape. Como a mulher nunca adorada se converte em Parca que corta a vida dos homens. E assim, é a retirada do divino sob a forma do amor humano que nos mantém condenados, encerrados nesta prisão de fatalidade histórica, de uma história convertida em pesadelo do eterno retorno.
A ausência do amor não consiste em que efectivamente não apareça em episódios, em paixões, mas no seu confinamento nesses estreitos limites da paixão individual desacreditada num facto, num raro acontecer. E então chega a suceder que até a paixão individual – pessoal – fica também confinada numa forma trágica, porque fica submetida à justiça. O amor vive e respira, mas submetido a um processo perante uma justiça que é implacável fatalidade. O amor está a ser julgado por uma consciência onde não há lugar para ele, perante uma razão que se lhe negou. Está como enterrado vivo, vivente, mas sem força criadora.”