quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

a opinião das estatísticas



Na opinião das estatísticas, esta é a música mais encontrada n´a rua deserta. Nada mau. Esta entrevista a Bauman é a mais pesquisada das inserções neste lugar de passagem. Este é o poema mais encontrado. Muito bem. A rua deserta teve 201 visualizações de páginas provenientes da Alemanha; posso chamar-lhes exportações?

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

As palavras transferidas. XV - Isolamento de contacto

Ainda há quem estreie a roupa ao domingo e espere visitas
para o desfile da múmia, a encenação das criaturas renascidas.
Nos hospitais, as manhãs internam-se debaixo do chuveiro
devagar entre os pensos e as veias puncionadas,
à vista um pijama pronto pendurado na porta.
À tarde vem a família junto à cama com as histórias possíveis,
luvas e batas descartáveis para que não se contaminem mais
do que com o silêncio que levarão para casa mais a roupa suja.
A vida não é fiável, diremos
depois do amor e das outras operações urgentes.

É como um velho estreando roupa ao domingo:
arruma-se alegre ao espelho
enquanto entrevê dali o saco no fundo do armário
com pijama, cuecas e chinelos à cautela,
ou discreto, no cabide, o fato que escolheu
para o mais prolongado isolamento de contacto.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Por Um Punhado De Euros. The Allstar Projetc

O homem que perdeu o sentido da terra perdeu tudo

O homem que perdeu o sentido da terra perdeu tudo
Não pode o escultor dar forma ao que não tem matéria
Todos os nossos gestos correspondem à paisagem e se não
perde-se a relação viva a consonância essencial

Senta-se alguém sobre uma pedra entre pinheiros
e tem em frente o mar e corre leve a brisa
Poderá estar cansado mas a paisagem limpa-lhe
a mente e aligeira as suas sombras

Quem olha ainda a linha imóvel das montanhas
e vê no mar a indolente ondulação de uma pantera
e vê as estrelas como se um leque se tivesse aberto
na cúpula celeste e o universo fosse uma árvore de astros?

A imaginação precisa da matéria prima
das substâncias da terra da visão material
e se queremos sentir que a pátria ainda está viva
temos de construir com a pedra a água o fogo o ar
a habitação aberta ao jogo do universo

António Ramos Rosa, in Pátria Soberana seguido de Nova Ficção (Quasi Edições, 2001).

domingo, 30 de setembro de 2012

circo

O circo é uma pequenina arena fechada, lugar de esquecimento. Durante alguns instantes permite que nos abandonemos, que nos dissolvamos em maravilha e felicidade, transportados pelo mistério. Saímos de lá como que envoltos numa neblina, entristecidos e horrorizados pela face quotidiana do mundo. Mas este velho mundo quotidiano, este mundo com o qual julgamos estar por de mais familiarizados, é o único que existe - e é um mundo de magia, de magia inesgotável. Como o palhaço, vamos fazendo as nossas cabriolas, simulando sempre, adiando sempre o grande acontecimento. Morremos a lutar para nascer. Nunca fomos, nunca somos. Estamos sempre na contingência de vir a ser, separados, desligados sempre. Sempre do lado de fora.

Henry Miller, O sorriso aos pés da escada (do Epílogo).

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Nacionalizar a SIBS

Se o que a SIBS faz é taxar o processamento dos pagamentos eletrónicos aos comerciantes como forma de remuneração da disponibilização deste serviço, poderemos entender isto como (mais) um imposto às empresas?
Se esta taxa paga pelas empresas varia consoante o poder negocial de cada empresa ou os escalões de pagamento atingidos, sendo assim tendencialmente mais generosa para os maiores grupos económicos, não é também isto uma violação constitucional do princípio da igualdade?

terça-feira, 21 de agosto de 2012

déjà vu



As novidades não cheiram a novo. Repetições de repetições, fragmentos referenciais, o mesmo contado por outro, as mesmas técnicas e ferramentas noutra voz. Que fazer? Andar por aí, contemplar as fórmulas até ao cansaço, meter o bedelho no mundo e ir cheirando as novidades.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Contra Miguel Real (3): uma bananice

Miguel Real diz:

"3. Contraditando o novo realismo, surge um realismo de tipo jornalístico, centrado numa história relativamente simples, por vezes excessivamente sentimental, ressuscitando memórias românticas do século XIX, desenvolvido num léxico transparente, não raro superficial, continuador do estilo dos romances portugueses até à década de 50, cuja publicação anacrónica prossegue até 2010. Citemos alguns dos autores deste tipo de romance, designado por «romance de mercado» porque escrito em obediência aos fluxos de vendas deste (verão, Natal), e, negativamente, designado por «romance light»: Margarida Rebelo Pinto, Tiago Rebelo, Maria Roma, José Rodrigues dos Santos, Júlia Pinheiro, Moita Flores, Júlio Magalhães, Pedro Pinto, Manuel Arouca, Isabel Stilwell, Maria João Lopo de Carvalho, Luís Miguel Rocha, Daniel Silva (A Marca do Assassino, 2007; O Artista da Morte, 2008; O Assassino Inglês, 2009; As Regras de Moscovo, 2010; O Confessor, 2011).
É um conjunto de autores que vive literariamente o presente, refletindo-o no conteúdo social dos seus romances e, voluntariamente ou por ignorância cultural, desconhece os veios nervosos tradicionais da cultura portuguesa do passado. [...]"

Eu diria:

Contraditando o novo ensaismo, ressurge um ensaismo do tipo elitista, centrado num conhecimento relativamente simples, por vezes excessivamente sentimental, ressuscitando memórias românticas do século XIX, desenvolvido num léxico transparente, não raro superficial, designado por ensaio light, como este "O romance português contemporâneo 1950-2010", o livro que afirma Daniel Silva como escritor português.

Contra Miguel Real (2): contra uma censura da crítica

Miguel Real diz:

“Neste sentido, o respeito pelo romance de mercado deve ser acompanhado pela ideia bem clara de que este, se desempenha uma função consolatória e catártica socialmente útil (como se comprova pelo número de venda de exemplares deste tipo de narrativa), não desempenha uma função esteticamente útil, isto é, em nada contribui para a história da literatura. O esclarecimento deste facto, porém, não deve contribuir nem para a vexação da obra nem para a humilhação do nome do autor – ambos, como referimos, devem merecer o devido respeito pela parte do crítico literário e do professor de literatura, mas não, evidentemente, a sua veneração. Normalmente, face a esta tensão entre o respeito, a crítica negativa e a veneração, a crítica literária deve ignorar este tipo de literatura, já que, se escrevesse sobre ele, seria obrigada a apontar um conjunto de habituais defeitos estilísticos, de pobreza lexical e de um restritíssimo campo histórico-semântico que, evidentemente, mancharia o nome do autor e reprovaria a edição do romance.” (O romance português contemporâneo 1950-2010, págs. 37 e 38).

Contra esta higienização da crítica (já de si suja pelo amiguismo deste país pequeno), eu diria:

A crítica literária, para ser crítica, não deve ignorar literatura nenhuma e dizer o que acha que deve dizer.

Contra Miguel Real (1): contra uma censura da leitura


Em "O romance português contemporâneo 1950-2010" (Caminho, 2012), o ensaista Miguel Real diz:

“Um grande romance deixa o leitor a habitar uma terra de ninguém ideológica ou um deserto mental de que não sabe como sair, forçando-o a repensar partes ou a totalidade da sua existência.” (pág. 37)

Eu diria:

Um grande romance pode deixar o leitor a habitar uma terra de ninguém ideológica, uma terra de alguém ideológica, a sua própria terra ideológica ou até mesmo terra nenhuma, ou um deserto mental de que não sabe ou sabe como sair, forçando-o a repensar partes ou a totalidade da existência do romance, e no limite da sua.

Dito isto, apenas concordo com o emprego do verbo forçar: um grande romance força o leitor ao espanto.

domingo, 1 de julho de 2012

bastarmo-nos

"Chegou, portanto, a catástrofe e no momento em que se assegurava que os corações iam bater em uníssono. Logo vemos se poderemos continuar a ir a voar para Mataró, como diziam os nossos avós. E agora a elucubração é em sentido contrário. Agora temos de nos fechar em nós próprios, bastarmo-nos a nós mesmos, partir da ideia de que tudo o que fora tomado por bom até agora é prejudicial e o contrário: que tudo o que até agora foi mal visto é excelente.
Há razões, parece-me, para ficar perplexo. O mundo de hoje é um mundo dominado pela perplexidade. Porém, algo se ganhou. As ilusões desvaneceram-se. Em muitos aspectos da vida a eliminação das ilusões é saudável e positiva. Há que reservar as ilusões para com elas temperar as paixões do amor e humanizar a ironia, para falar com os amigos, para simplificar a vida."

Termina assim o livro "Viagem de autocarro", de Josep Pla (Tinta da China, 2011).

Shooting Rockets (From The Desk Of Night's Ape). Destroyer

terça-feira, 12 de junho de 2012

Esta viagem


Esta viagem não responde às minhas perguntas.

Trespassei o aço das certezas.
Heranças, devorei-as.

A etapa seguinte rasga a prévia cartografia
Toda a fronteira é um apelo à renúncia.

Prescrutei mares cidades sinais nas pedras papiros.

Ao encontro da linguagem da tribo azul
cada passo me afasta de um rito sagrado.

Esta caminhada decreta um tráfico sem remissão:
a fortaleza do sonho pela metamorfose das feridas.

Vítima da memória, nenhum deus me acolhe à chegada.


Esta viagem. Conceição Lima in O País de Akendenguê (Caminho, 2011).
Imagem no desfiladeiro de Petra (02.06.2012).

Jerusalém. 4.06.2012

Petra. 02.06.2012




Monte Nebo


"Em seguida, Moisés subiu das planícies de Moab a uma montanha de onde se via a Terra Prometida. Daquele ponto Deus mostrou-lhe toda a região que se estendia para ocidente, desde o rio Jordão até ao Mar Mediterrâneo, cem quilómetros mais longe, e a cidade de Jericó alguns quilómetros para norte, do outro lado do rio Jordão: «a cidade das palmeiras». Então, Deus disse a Moisés: «Esta é a terra que jurei dar a Abraão, Isaac e Jacob. Dá-la-ei à vossa descendência.» Quanto ao próprio Moisés, Deus disse-lhe: «Viste-a com os teus olhos, mas não entrarás nela.»" In Os 5000 anos de história e fé do povo judeu. Martin Gilbert, Alêtheia, 2011.

Foto: memorial no monte onde Moisés avistou a Terra Prometida. 1.06.2012.

deserto


"Mas era assim que o mundo resolvia as questões do Médio Oriente: a Jordânia, ou Transjordânia, foi criada de forma arbitrária pelos ingleses - sim, pelo próprio Winston Churchill, provavelmente com um lápis, entre bebidas. «Pronto, vamos dar esta parte aqui àqueles hachemitas.» Por isso, agora existe uma nação «legítima» naquela zona." Saul Bellow, Jerusalém ida e volta (Tinta da China, 2011, p.68).


Fotos: Pelo deserto de Wadi Rum, deserto da Jordânia. 3.06.2012

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Adiamento

Esta tarde pensei em voltar aos poemas quando chutei a ponta de um cigarro
no Largo da Portagem e a vi sumir-se entre as pedras.
No percurso até ao carro fui mapeando a calçada mas eu já não sei
se vim pelas pedras, se me afundei pelas fendas.
Volto de Coimbra como se ainda viesse atrás de um carro funerário
na marcha lenta dos Covões. Felizmente posso parar
numa área de serviço e comer qualquer coisa só para praguejar do preço
e sair satisfeito mais pelo encolher de ombros das funcionárias do que pela sandes,
e de pensar que se estivesse em 1986, de modo nenhum eu viria
pela autoestrada. Isto porque anda aqui a biografia do Assis Pacheco
e uma catrefada de leituras no trólei.
O lugar das coisas adiadas é nas fendas, entre as pedras - digo para mim
e acrescento o meu nome completo.
Depois chego à Nazaré,
onde os poemas começam e se adiam.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Vilar Formoso

07.09.2011. Portagem para o Magic Kingdom. Disney Orlando

uma visita aos velhos


06.09.2011. The Muppett Show. Disney Orlando

ao sol

06.09.2011. Downtown Disney Orlando.

01.09.2011. USA. Cemitério.

31.08.2011. NY. Nada romântico.

31.08.2011. NY
31.08.2011. Lá.

31.08.2011. NY
31.08.2011. NY

"A principal característica do taxista de Nova Iorque é que não é abelhudo (não nos pergunta quem somos, nem o que fazemos, nem de onde vimos, a menos que lhe ofereçamos tais informações de forma espontânea), mas conta-nos todas, mas mesmo todas as suas maleitas, desde o pé inchado até à dor de cabeça." in Nova Iorque. Brendan Behan (Tinta-da-China, 2010).

31.08.2011, NY. Cão estacionado.
31.08.2011. Um Starbucks em cada esquina. Dei um pontapé num caixote e achei um Starbucks.
31.08.2011. O Bronx, foto de passagem, como todas.
Foto de 31.08, a caminho de NY.

A pluma caprichosa. Alexandre O´Neill ("como os amantes quando percorrem as ruas desertas dum jardim | um pouco a medo")

[...]

Estou onde não devia estar

E o destino passa por mim como uma pluma caprichosa
passa pelos olhos dum gato
como o avião passa no céu do camponês
como a cidade passa pelo convalescente
que sai pela primeira vez

Nos olhos da mulher que não perdi nem ganhei
nos olhos que durante um segundo me compreenderam e amaram
na sua ternura quase insuportável
o destino passa

No amigo que lentamente é puxado para o outro lado da razão
e um dia mergulha na sombra que trazia em si por resolver
o destino cumpre-se e passa
Na praia nocturna que as ondas visitam e deixam
como as imagens que sem cessar me assaltam e abandonam
na espuma que esmago contra a areia muito fria
na mulher que me acompanha e comigo se perde na noite
nos soluços de luz verde que um farol nos envia
o destino detém-se e passa
Na inesperada hora de felicidade
vivida um pouco a medo
como os amantes quando percorrem as ruas desertas dum jardim
um pouco a medo
como a breve noite de amor em que um homem se encontra e refugia
o destino demora-se e passa

Estou onde não devia estar

[...]

Excerto. Poesias Completas de Alexandre O´Neill (Assírio & Alvim, 2000)

Livro da noite. Per Aage Brandt (Quetzal, 2004)

quando duma coisa
decorre outra
e desta decorre
outra vez a primeira
então a primeira
não vale a pena

*

o homem é um hóspede efémero da terra,
pensava o poeta asteca, mas um hóspede
nem sempre é um homem aqui na terra;
na rua, num país estrangeiro, na cama de alguém,
acontecem coisas estranhas, um coração é uma
arma eficaz, e (citação) de qualquer modo morreremos,
abandonando-nos uns aos outros, abraçados, com a língua na
orelha
de um corpo que vibra de prazer ou se alonga num grito de
guernica,
depois do encontro com alguém que passou
e desapareceu ou tomou a decisão de ficar

*

nós somos assaz complexos e por isso
deprimidos no limite do existencial, é impossível
dizer o que qualquer coisa significa, além do que significa,
e isso torna-nos assas complexos, sabemos, e isso entristece-nos
tanto que é impossível dizê-lo, o que nos vai tornar
eminentemente
existenciais, congratulando-nos muito com isso, na catedral
apertamos
as mãos e agradecemos a indizibilidade de cada um, depois
tomamos o rumo
da cidade para ver os saltimbancos no mercado efervescente,
feito
de mistérios de cores dominicais, relíquias, atiradores de tartes
e macacos de realejo, postais, músicos constipados, alguns
poetas que rimam por encomenda e pares de apaixonados,
confundidos num único abraço, enquanto é tempo,
e o ser permanece: o real ainda é possível

ponto da situação

"Entretanto o modo de viver modificou-se profundamente, a criminalidade difunde-se, os jovens desinteressam-se da política mas as discotecas estão repletas e alguns lançam-se em acções violentas; as classes altas enriqueceram mais, as classes médias debatem-se com dificuldades embora não abdiquem das conquistas da tecnologia, dois milhões vivem abaixo de um nível aceitável. Transformações políticas, económicas, sociais, culturais, afectando as relações sexuais e as estruturas familiares, não favorecendo a eclosão da personalidade porque se desistiu de ideais em nome de um «pragmatismo» enganador e a meta da vida é ganhar mais trabalhando menos (a realidade é trabalhar mais para ganhar menos)."

in Problematizar a sociedade. Vitorino Magalhães Godinho (Quetzal, 2011).