sábado, 20 de novembro de 2010

Carta ao Futuro. Vergílio Ferreira (Quetzal, 2010)

"Estamos instalados na vida como se nós próprios não existíssemos, como se fôssemos o próprio mundo que existe, a própria realidade que é, a sua presença absoluta de estar sendo. E a simples reflexão de que é o mundo que depende de nós, de que a sua maravilha está suspensa, para nós, do nosso olhar, dá-nos vertigens. Que admira que uma pequena invenção técnica nos perturbe, nos abra a velha interrogação? Eis que depois de abarcarmos a terra, de a colocarmos na mão como a pequena bola de um deus poderoso, depois de nos confrontarmos nas nossas raças, nos nossos sonhos milenariamente solitários, depois de esgotarmos a nossa procura mútua, eis que acabamos de rasgar os espaços até lá de onde a nossa imaginação descobre o vazio que nos circunda, descobre, num arrepio, o nosso pobre globo perdido na poeirada dos astros, recorda, com uma nova evidência, a infinitude das distâncias que o unem ao universo. E uma vez mais a velha angústia de um Lucrécio, de um Pascal, em face da eternidade da noite, nos desvaira de aflição. Possivelmente, meu amigo, quando esta carta te chegar às mãos, se chegar, estarás tu já instalado em indiferença no meio de quanta nova invenção que não sabemos nem imaginamos."

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"A arte é o estatuto da plenitude da nossa identificação. Portanto, se ao pé de ti se pasmar e perguntar como pudemos nós conferir tamanha dignidade a mármores partidos, papéis rabiscados, manchas de tinta, tu saberás reconhecer que o que a nós se impôs foi sobretudo a fascinação de ver, de tornar presente para nós as fronteiras do mundo que habitamos, foi o sonho desse dom da revelação, da descoberta maravilhosa de uma verdade de origens, a verdade que era nossa, com a qual nós tínhamos uma entrevista marcada e à qual não desejámos faltar. Tu saberás dizer que o que nos fascinou foi o realizarmos, em presença total, a vida que nos coube, foi estarmos presentes ao universo, adentro da dimensão que era nossa, a de uma profunda humanidade, a da evidência, do milagre. Tu saberás responder que a arte não foi para nós um valor em si, como obra - a não ser para aqueles de nós que foram mais ambiciosos ou distraídos; mas que foi, sim, a dimensão única que nos restou, de outros sonhos destruídos, para nos vermos adentro do milagre humanizado, do mistério terreno, da evidência imediata que o sobressalto ilumina; que a arte não foi um valor de redenção, senão enquanto foi um valor de posse esclarecida, de identificação, de comunhão assumida.
Só assim se entenderá o que tu próprio talvez julgarás degradação da mesma arte, na arte que nos coube. Porque ela se nos despedaça na raiva com que a amamos, com que amamos a vida. Como a um pobre filho que nos nasceu aleijado mas nem por isso cabe menos no nosso amor. Pobre amor desgraçado, com olhos nublados olhamos a esse filho, o contemplamos desde a amargura que nos endurece o coração. Tu explicarás que a nossa arte degradada é a imagem da vida que o destino nos traçou, a forma dolorosa de lhe reinventarmos a imagem obscurecida na distracção quotidiana. Os destroços que dela encontrares um dia e que possivelmente rejeitarás, foram o nosso modo de nos reencontrarmos connosco, de nos assumirmos desde as ruínas de um mundo que se desmorona, de nos revermos na total e iluminada imagem do que somos e não queremos rejeitar como nada rejeitamos da nossa verdade original. Assim a plenitude que nela descobrimos foi acima de tudo a plenitude de saber, da revelação. Porque o saber pela evidência, pela comoção de raízes, é a exaltação do que em nós é mais que nós, do que em nós é o próprio fulgor da vida, é a sua própria chama. A grandeza da arte, o que faz dela um valor, no meio da derrocada de tanta velha esperança, não vem apenas do acto que afirma o nosso poder e a nossa liberdade - vem ainda ou sobretudo da figuração da vida no que nela é mais profundo e portanto na figuração da beleza que doura e envolve toda a aparição."

a rua deserta

"[...] Mas a vida está cheia do seu dom original e só espera de nós um pouco de atenção - ou não bem de atenção, não bem de atenção: um pouco de humildade, de uma íntima nudez. Eu o reconheço de novo, a esse dom, nesta hora de chuva em que escrevo. Na rua deserta, ouço-a cair, expulsar da cidade os robôs da ilusão, a grandes brados de um vento sideral. [...] Eu os vejo agora, passando desorientados pela rua abandonada, fugindo, espavoridos, à invasão do silêncio."

in Carta ao Futuro. Vergílio Ferreira (Quetzal, 2010).