terça-feira, 22 de junho de 2010

mar mulher

cobre-te de redes para seres mulher
anéis de cordel a renderes-me os dedos
ondula-te o sangue
mar mulher redes adentro
para eu ser homem
para seres ventre
quero dar-te os dedos
semear-te o fundo
cobrir-te de redes
e redescobrir-me

lugar comum

entre eu e tu
e mim e ti
pelo menos essas vogais

haverá sempre uma vogal entre nós

e consoantes na deriva
vocabular do nosso silêncio
pautado

surdos asfaltos descaem para casa
para a vogal entre os nós
acentuada

quem me dorme

quem me dorme por mim
quando adormecido me não durmo
sabe que me dorme
que enquanto me dorme
é a si que eu durmo
e sabe que me acorda
quando acorda de dormir em mim
ou então sou eu que acordo de a vir dormir

quem me dorme por mim
não dorme comigo

poema de amor

fazes-me falta

e é para penalti

desarrumação

insignes
as insígnias do dever
cumprido na ordem
do mundo na casa que fica
sem gente

insignes
as gentes que ficam
com as insígnias do mundo
na casa cumprida
no dever da ordem

insignes
as ordens do dever
do mundo cumprido
por gente sem casa
por insígnias se fica

sem ar
rumo. Insigni
ficância

"há mais vida para além da literatura"

Quadra de Victor Silva Tavares a Rui Caeiro, no documentário dedicado à editora &Etc, realizado em 2007 por Claudia Clemente (sem acento, respeitando a caixa e as legendas), e agora lançado na colecção dedicada a escritores portugueses:

o Rui é aquele careca
que filosofa à tardinha
sobre tudo o que é cueca
da vizinha



poema de amor

tens lume, te disse
respondeste que não
e nem sequer era uma pergunta

amor

Não existe um maior número de pessoas a atingir mais vezes os elevados padrões do amor: o que acontece é que esses padrões estão mais baixos. Como resultado, o conjunto de experiências às quais nos referimos através da palavra “amor” expandiu-se muito. Noites avulsas de sexo são descritas por meio da expressão “fazer amor”.

O conhecimento que se amplia juntamente com a série de eventos amorosos é o conhecimento do “amor” como uma série de episódios intensos, curtos e chocantes, desencadeados pela consciência a priori da sua própria fragilidade e curta duração.

Não é ansiando por coisas prontas, completas e concluídas que o amor encontra o seu significado, mas no estímulo a participar da génese dessas coisas.

Em todo o amor há pelo menos dois seres, cada um deles a grande incógnita na equação do outro. É isso que faz o amor parecer um capricho do destino – aquele futuro estranho e misterioso, impossível de ser descrito antecipadamente, de ser realizado ou protelado, acelerado ou interrompido. Amar significa abrir-se ao destino, à mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde com o regozijo numa amálgama irreversível. Abrir-se ao destino significa, em última instância, admitir a liberdade no ser: aquela liberdade que se incorpora no Outro, o companheiro no amor.
E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a “experiência amorosa” à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço.

Sem humildade e coragem não há amor. Estas duas qualidades são exigidas, em escalas enormes e contínuas, quando se ingressa numa terra inexplorada e por cartografar. E é a esse território que o amor conduz quando se instala entre dois ou mais seres humanos.

[Citando Levinas,] Eros é “uma relação com a alteridade, com o mistério, ou seja, com o futuro, com o que está ausente do mundo que contém tudo o que existe”. “O pathos do amor consiste na intransponível dualidade dos seres.” Tentativas de superar essa dualidade, de abrandar o obstinado e domar o turbulento, de tornar prognosticável o incognoscível e de acorrentar o nómada – tudo isto tem o som do dobre de finados para o amor. Eros sobrevive à dualidade. Quando se trata de amor, posse, poder, fusão e desencanto são os Quatro Cavaleiros do Apocalipse.
Nisto reside a assombrosa fragilidade do amor, lado a lado com a sua maldita recusa em suportar com leveza a vulnerabilidade. Todo o amor se empenha em subjugar, mas quando triunfa encontra a derradeira derrota. Todo o amor luta para enterrar as fontes da sua precariedade e incerteza, mas, se obtém êxito, rapidamente enfraquece – e definha. Eros é possuído pelo fantasma de Tanatos, que nenhum encantamento mágico é capaz de exorcizar. A questão não é a precocidade de Eros e não há instrução ou expedientes autodidácticos que possam libertá-lo da sua mórbida – e suicida – inclinação.
Eros move a mão que se estende na direcção do outro – mas mãos que acariciam também podem prender e esmagar.

Não importa o que aprendemos sobre o amor e o amar; a nossa sabedoria só pode vir, tal como o Messias de Kafka, um dia depois da sua chegada.

O amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável.