sexta-feira, 14 de junho de 2013

As palavras transferidas. XVI - Última infância

Podem morrer-me os livros nas mãos
da noite inaugurais como as manhãs que já não vêm.
A mão esfria de folhear cabelo a cadáver.
Ler é ofício côncavo, uma mão a pedir esmola,
outra farta vilanagem a dobrar cada esquina de papel.
Ler é pouco menos que vaidade de profanar cemitérios.
Dos bons livros aprendi somente as ciências falíveis e as tabuadas de acaso
e caso me perguntem por elas, direi que esqueci
da própria geometria do esquecimento
planando redundâncias sobre os grandes mestres.
Podem morrer-me os livros nas mãos.
O prazer do jogo esconde a sua privação,
 inexprimível, patética,
o ajuste indizível da carne no golpe,
a implosão silenciosa da infância.
Podem morrer-me os livros nas mãos.
Podem morrer-me os livros nas mãos que a criança não volta.