sábado, 30 de outubro de 2010

Crisis? What Crisis?



Capa do disco "Crisis? What Crisis?" (Supertramp, 1975).

"Pensar filosoficamente pode revelar que a nossa satisfação com os factos da vida provém mais de uma habilidade de ignorar o que se passa à nossa volta do que uma efectiva alegria de viver." (Charles Feitosa, in Explicando a Filosofia com Arte.)

"A sabedoria dos animais". In Explicando a Filosofia com Arte (Charles Feitosa, Ediouro, Rio de Janeiro, 2004).

"(...) "Observa um rebanho, que pasta diante de ti. Ele nada sabe sobre o ontem ou o hoje, ele corre daqui para ali, come, descansa, digere, corre novamente, e assim de manhã até à noite, dia após dia, amarrado através de seu prazer e de sua dor à estaca do instante, e por isso mesmo nunca melancólico ou deprimido" (Segunda Consideração Intempestiva [1784]. Segundo Nietzsche, o homem observa o comportamento do animal e fica com inveja, pois também gostaria de não ficar triste. Pergunta então: "por que você só fica aí me olhando e não me fala da sua felicidade? O animal quer responder e dizer: isso vem do facto de que eu sempre esqueço o que queria dizer - mas ele já esquece também essa resposta e se cala. O homem fica admirado de seu siêncio" (ibid).
O olhar oblíquo de Nietzsche sobre o rebanho no pasto faz com que também vejamos tudo de forma insólita e surpreendente. O animal, que é sem passado e sem futuro, parece viver mais intensamente que o homem, oprimido pelo excesso de memória e de "pré-ocupações". Para ser feliz e fazer os outros felizes será preciso recuperar um pouco da sabedoria dos animais ou das crianças: a sabedoria do esquecimento."

sábado, 9 de outubro de 2010

As palavras transferidas. VIII – Uma teoria da abstração e do abstrato

Entre cerco e clausura, as palavras transferidas.
Todas as palavras são apelo à comiseração,
como o cerco e a clausura que estas palavras configuram e significam.
Das palavras nascem palavras-coisas e para estas imagens se transferem.
Palavras de palavras.
Situamos a palavra, que é cerco e clausura, numa reclusão externa –
esta coisa de silêncio, imagem de um grito mudo complacente.
À doença de esperar dá-se o nome de silêncio.
Fechados nele, abreviamos e resolvemos as imagens:
a porta escancarada,
luz intermitente entre cortinas, o corpo
cansado numa cama a suspender-se para o tempo, o vazio habitável
no cerco do dia, de cada jornada de esquecimento,
de palavras que nos fecham nas imagens,
na clausura das notícias – palavras de palavras de palavras.
Ganhar a jorna é esta consciência de vazio entre as imagens,
desta prisão que nos abstrai,
a projeção sequencial de luzes na tela escura
e de nelas dissolvermos a sombra que não somos.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O livro abandonado

Eu, uma vez corri a outra nova aventura. Foi em Raimundo, uma das terras mais ricas do país. Vivia eu num apartamento, quando ouvi um barulho estranho. Parecia alguém a chorar. Fui ver. Que estranho, sabem o que eu ouvi? Um livro a chorar. Nunca tal me tinha acontecido ver isto, mas vou contar como foi: - O que vem a ser isto? - perguntava eu - um livro a chorar?!
- Sim! Um livro a chorar! - dizia e chorava o livro.
- E a falar? É de desmaiar! Agora vamos ao que interessa: porque é que choras?
- É que ninguém me quer ler, dizem sempre: este livro não presta! Este livro é muito grande para ler! Assim eu sou abandonado.
- Pois agora vou-te perguntar: os livros todos que eu li não falavam nem choravam e porque é que tu choras?
- É que eu venho do mundo dos livros e fabricaram-me mesmo de propósito para que alguém me lesse e se alguém me ler irá para o meu mundo!
- Mas porque é que quem te ler tem de ir para o teu mundo?
- No nosso mundo, os livros estão a acabar e precisamos de poetas para escreverem mais livros! Porque sem poetas não há livros e será uma grande tristeza se não houver livros!
- E porque é que será uma grande tristeza se não houver livros?
- Olha, olha, os livros, nós, ensinam tudo ao homem e se não houver livros os homens não saberão nada!
- Lá nisso tens razão, eu sou um poeta! Vou-te abrir se tu me prometeres que me levas de volta ao mundo do Homem!
- Prometo!
- Combinado, então vou abrir-te!
E eu abri o livro e fui ter ao Mundo dos livros.
Assim na vida nunca mais faltaram livros.


Maceirinha, 24 de Março de 1988 (9 anos de idade)