domingo, 19 de dezembro de 2010

Albas. Sebastião Alba (Quasi, 2003)

"Do fígado, não há notícias: fiz um voto - nunca mais olhar para um jornal, um televisor ou um anúncio luminoso, mesmo que não tenha para onde olhar. Afinal, era isso que me dava cabo dele, do fígado. Mas não achas que o vinho deve ter, também, contribuído?"

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"O meu velhote ao  ver um programa de televisão dizia-me: "Já reparaste que não sabemos lá muito bem onde pôr as mãos, desde que as levantámos do chão? Ou andamos com elas atrás das costas ou ao volante.""

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"Houve uma época em que fui tentado a confundir a prole de intelectuais que expunha ou dissecava determinado corpo de doutrina, com o seu progenitor: via num darwinista, Darwin; num marxista, Marx, e assim por diante. Sei hoje que isso me era tão nefasto como ver, em cada uma das mulheres que amei, a mulher do meu sonho."

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"Os homens olham para as mulheres como se as devorassem - não pensam noutra coisa. As mulheres passam de olhos abstractos - não pensam noutra coisa (ainda que não olhem para ninguém excepto umas para as outras duma maneira gélida, quase cruel). Vestem-se todos para se exibir uns diante dos outros.
A sua cosmogonia é o jornal "A bola" e a "telenovela brasileira". Se uma guerra nuclear varrer sociedades destas da face da terra, nada se perderá. A vida renasce, renova-se."

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"Uma fome de mulher quase patética começa a devorar-me... Mas se o preço é a integração numa sociedade que me parece um certame, prefiro morrer à míngua."

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"«Por que amas, ainda, um povo submetido e triste que nada te pode oferecer?...»
Aquele que é talvez o mais vigoroso pensador do séc. XIX viu, em Milão, um cocheiro a chicotear o cavalo. E abraçou-se ao pescoço do pobre animal protegendo-o. Era Nietzsche. Quem sou eu para não me comover?
Às vezes sinto que as pessoas vão tão infelizes que me apetece fazer-lhes uma festa, na rua, tocar-lhes no ombro. Mas se for uma mulher, diz logo: "parece que é parvo"! E, se for um homem: "ó amigo, tire a mão de cima!" Já viste a minha vida, Neide? Merda."

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"Queridas filhas:
Não creio nos filósofos, mas cativou-me sempre a sua audácia de pensar.
É bonito, leiam-nos.
Quanto aos poetas (o pp. foi um deles) sorriam-lhes de longe.
Mas atenção aos grandes músicos, à sua estranha perfeição, à nostalgia que nos invade ao escutá-los.
Quando encontrarem um, não o deixem escapar.
Poderia pensar-se que nos trazem (os músicos) notícias de Deus.
É mais: como Deus não existe, eles têm de forjá-las."

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"Pai:
Estou farto de Alain Prost;
dos "jovens empresários";
dos "70x7";
de Nossa Senhora de Fátima (e da do Sameiro);
da Volta a Portugal em Bicicleta;
do filósofo paraclético Agostinho da Silva e daquela reafirmada intenção do Mário Soares (aqui tenho de ser mais extenso, é o Presidente da República), já tão cansado da Magistratura como a Teresa Batista, do Jorge Amado, o estava da guerra: "queria ter tempo para escrever ainda alguns livros". Que lata!
Mas sobretudo, estou farto de si e de mim (e do Júlio Isidro; e do Carlos Cruz). Ora sabe de que é que eu nunca me fartei? Dessa página do Nietzsche:
«Será preciso demonstrar até que ponto tudo o que é consciente permanece superficial, até que ponto a acção difere da imagem da acção, como sabemos pouco daquilo que precede a acção (...); de que modo os pensamentos, as imagens, as palavras não passam de símbolos dos pensamentos (...); em que medida o elogio e a censura permanecem superficiais; como a nossa vida consciente se passa essencialmente num mundo da nossa invenção e da nossa imaginação (...) e como a coesão humana assenta sobre a transmissão destas invenções - enquanto, no fundo, a coesão verdadeira (pela reprodução) prossegue o seu caminho desconhecido.» Sabe como eu gosto de Nietzsche, (gostamos) de pensar com ele, o que não seria capaz de fazer sozinho.
Trago, desde os vinte e três anos, a ilustração tatuada, no braço esquerdo, de um aforismo dele:
«Quando se ama o abismo é preciso ter asas.»
Nunca pensei que entre a teoria e a prática (desculpe o estilo académico) houvesse um fosso intransponível: o que nós continuamos a cavar!
É admirável como certas pessoas suportam o fardo que levam sem o alijar."

Albas. Sebastião Alba (Edições Quasi, 2003)

"Arrosta com a solidão; não a trajes, não exibas. É uma palavra gasta pelo uso que lhe dão as mulheres sós, ou seja, privadas de homem, e vice-versa. Sem fala, a tua é a de alguém diante da sua morte. Pensas, ao adormecer: "Acordarei?" Os dias são povoados mas exteriores; é apenas essa exterioridade que vives e compartilhas.
Não te deixes invadir por essa ternura delicodoce, fanada, a saudade à portuguesa; endurece, ou sucumbes."