sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Estranhas criaturas. Henrique Manuel Bento Fialho (Deriva, 2010).

"SEREIA
Nem com cera nos ouvidos, nem de olhos vendados, nem de cabeça enfiada na areia, nem assobiando para o lado, nem olhando por cima do ombro, nem ficando, nem partindo, nem com os ossos todos quebrados, nem engessado num coma profundo, nem perto, nem longe, nem aqui, nem agora, nem nunca, nem sempre o canto das sereias me atrai como me trai o silêncio de quem nelas não compreende a mais básica condição: nascemos para colidir contra a morte, somos um mero acidente.
E só por mero acaso não descendemos de musas enfunadas, de deuses arrependidos, só por mero acaso não somos o canto atraente de quem mais que correr não pode simplesmente andar, de quem mais que sonhar não pode simplesmente adormecer, só por mero acaso somos homens e só por sermos homens somos um dano dificilmente reparável."