sábado, 3 de julho de 2010

hipoteca

este é o meu último poema de amor
acabo hoje todos os poemas
de amor são os últimos porque
todos os poemas de amor são golpes violentos
- lâminas em sangue, caídas depois de vincadas
as linhas das mãos -
a vingança redige todos os poemas

este é o meu último poema laminado
e hoje deixa de ser meu
não tenho nada, as mãos exangues
pago uma renda para morrer todos os meses
existo por contrato
e todos os meus gestos, os meus passos
as perguntas, os papéis, a vingança, o amor-
-próprio
ficaram registados em teu nome

pago o resgate morrendo cada dia um dia mais
que todos os outros
no silêncio que é o fio e o fim do poema
da vingança, do amor
as últimas coisas

este é o meu último poema de amor
que acaba assim:

do tédio

"Os cientistas afirmam que os ratos de laboratório, se fossem privados de brinquedos ou da companhia de outros ratos, dariam a si próprios dolorosos choques eléctricos, preferindo isso a suportarem um tédio prolongado. Mesmo estes choques eléctricos como tortura auto-infligida poderiam oferecer algum prazer, ao que parece: a antecipação do tormento é em si mesma excitante, e depois há a emoção que acompanha um comportamento de risco. Muito mais importante, porém, os ratos farão quase tudo para criarem acontecimentos para si próprios num tempo-espaço que, de outra forma, estaria privado de acontecimentos. É o que se passa com as pessoas: não só gostamos dos nossos enredos, como precisamos dos nossos enredos e, até certo ponto, somos os nossos enredos. Uma história-da-minha-vida sem uma história não é uma vida. (...) Tal como os ratos e os choques eléctricos auto-infligidos, preferíamos ter alguma coisa dolorosa a acontecer-nos do que absolutamente nada a acontecer-nos."

"A dívida como enredo", in Desforra - a dívida e o lado sombrio da riqueza, Margaret Atwood (Bertrand Editora, Março de 2010).