domingo, 28 de fevereiro de 2016

As palavras transferidas. IX - Do espetáculo-vida

Entre jogo e verdade, as palavras transferidas.
No fascínio do jogo a universalidade das metas –
jogo é assim representação plena do mundo,
movimentos irrepetíveis na tômbola dos dias,
o campo iluminado de verdade na noite interminável.
O jogador concebe e reproduz a conceção
em movimento sistémico
na emergência do fim. 
E isto é a arte. 
Deificamos o que é finito, finitude é a essência do jogo, 
a sua maravilhosa perfeição.
O fim do mundo não é o fim do mundo,
daí que o jogo o represente e reproduza submetendo
os dias giratórios e a certeza da noite
aos artifícios do deslumbramento pelo efémero,
à adoração das marcas e da nomeação.
E, enfim, das datas.
Parabéns.

As palavras transferidas. VI - O mito da informação

Entre o ser e a denúncia, as palavras transferidas:
ser é o prenúncio cadente, a perceção das coisas,
simulacro de incêndio, arrepio e urgência
do ato, o movimento que fixa, dissemina e esquece
a ideia inaugural.
Procuramos a origem no horizonte,
na lufa-lufa dos corpos e das braças de água.
Esgravatamos a terra iludidos com sementeiras e plantações
para a colheita da fome.
O gesto das máquinas desenha a origem
na produção da palavra
a vida deflagrada é um incêndio
em forma de simulacro de sentido, construção pelo fogo.
Também a palavra é máquina a transferir-se para o gesto,
a configuração das ideias – as chamas –
num projeto a carvão que denuncia o mundo a partir da narrativa.
E então o mundo é ele todo em combustão o seu anúncio.
Esta é a sua notícia.
Informados disso, da cinza do mundo, seguimos agora
para o nosso entediante intervalo de publicidade.

As palavras transferidas. III - O mito da mãe

Entre a forma e o mito, as palavras transferidas:
a cama suspensa
nos ombros dos deuses
- a substância a caminho da sua narrativa.
Os adjetivos qualificam as coisas
e as coisas qualificam as unidades míticas que as constituem, projetados pelos verbos.
Tudo mais são elos de ligação e redundância.
Somos matéria, conceção do mundo rebuscando entre qualificativos.
Não temos mais nada para nos desvendar.
Vendados seguimos em demanda de nós pelas vias possíveis,
a porta escancarada,
luz, intermitência.
Recuemos.
Intermitência, luz,
escancarada a porta,
pelas vias possíveis seguimos vendados em demanda de nós.
Não temos mais nada para nos desvendar.
Somos matéria, conceção do mundo rebuscando entre qualificativos -
tudo mais são elos de ligação e redundância.
Recuemos sem êxito. Renovemos a noite interminável.
Neste desconsolo genético e abstrato da impossibilidade de ser,
geraremos os filhos,
as unidades míticas da nossa abnegação.

As palavras transferidas. I - O mito do medo

Entre a noite e a mão, as palavras transferidas:
noite, assombro,
suspenso, derradeiro,
a porta escancarada,
luz, intermitência,
o teu afago enquanto durmo:
primeira vez a banhares-me o rosto,
primeira luz, primeira água
a escorrer-me na cara imóvel para que não afastes a concha terna,
tua mão sob o meu rosto iluminado.
E então não acordo mais
para que não grites,
para não teres de ir e a luz não funda
estas quatro figuras peregrinas
levando-me em ombros pesarosos,
suspenso na cama,
pela porta escancarada
as palavras trasladas, sempre derradeiras,
a tua mão infinita guiando-as
escadas abaixo
para a noite interminável, assombro
que a luz restabelece e recarrega todas as manhãs.

Alegações

Primeira sessão. A história não valida o poema.
Se o poema diz partir
ou partir o poema,
não é da história que o poema parte à procura
mas da complacência pela moral do poeta
num ato de perpetuação.
A complacência não valida o poema:
o poema diz que a verdade é partir
porém o poema fixa, não parte
- a verdade não valida o poema.
O poema diz partir – que partir é este?
Não entrevemos se o poema vai ou se quebra.
A linguagem não valida o poema.

O poema valida e intrica
a história, a complacência, a verdade, a linguagem.
Resta saber se o poema se valida por igual
ou se o poema é inválido.

Segunda sessão. A história valida o poema.
Se o poema diz vingar
ou vingar o poema,
é a história que o poema pretende vingar
na complacência pela moral do poeta
num ato de perpetuação.
A complacência valida o poema:
o poema diz que a verdade é vingar
e logo o poema vinga
- a verdade valida o poema.
O poema diz vingar – que vingar é este?
Entrevemos que o poema quanto desforra, tanto medra.
A linguagem valida o poema.

A história, a complacência, a verdade, a linguagem
validam e intricam o poema.
Resta saber se o poema as valida por igual
ou se todas são inválidas.

Vai, Ucrânia