terça-feira, 14 de setembro de 2010

"Poema e Sistema". In "A Metáfora do Coração e outros escritos", Maria Zambrano.

“Não é necessário insistir sobre quão e delicado havia de ser o estudo que tornasse manifesta a unidade da poesia com a filosofia na forma sistemática, e muito mais se se tratasse de descobrir as suas conexões históricas e as afinidades com velhas formas de saber esquecidas.
Porém, há algo que nos aparece de modo evidente, e é que Poesia e Filosofia, olhadas nos seus mais puros exemplos, se unem, separando-se das restantes criações da palavra; há entre elas uma íntima, essencial e viva unidade. Unidade que é identidade, uma especial identidade entre a pessoa vivente com a sua criação. O filósofo e o poeta estão mais identificados com a sua obra que qualquer outro autor. Parecem até ter conseguido mais que nenhum outro esse anseio de dar à diversidade das horas vividas, à multiplicidade da vida real, um equivalente unitário; conseguiram uma transmutação ou metamorfose em que a alma se uniu ao espírito ou ao intelecto, quer porque ela o absorve – na poesia –, quer porque a inteligência recebeu dentro de si a alma. As duas são a fusão de disparidades antagónicas; as duas, apaziguamento em que os mais secretos anseios se acalmam e a vida encontra o seu espelho adequado.”

"Apontamentos sobre o tempo e a poesia". In "A Metáfora do Coração e outros escritos", Maria Zambrano.

“A arte parece ser o desejo veemente de decifrar ou procurar a pegada deixada por uma forma perdida de existência. Testemunho de que o homem gozou alguma vez de uma vida diferente. Mas nesta procura as artes da palavra parecem encerrar a clave mais que as plásticas, sempre mais deste mundo, mais adaptadas à realidade que se nos oferece. A razão não é difícil de encontrar; as artes plásticas têm menos que ver com o tempo; a sua aparência, de imediato, é espacial e não sucessiva; o seu gozo não é, ao mesmo tempo, uma realização.
E na vida humana o decisivo é o tempo. Mais, o tempo em que vivemos parece ser já o produto de um rompimento. Daí o irresistível anseio, nascido da nostalgia desse tempo perdido, que se em alguma arte se reflecte é na poesia, pois ela parece procurar a sua possível ressurreição, dentro deste tempo em decadência.”

“A palavra voltar-se-á para o que parece ser o seu contrário e mesmo inimigo: o silêncio. Quererá unir-se a ele, em vez de o destruir. É «música calada», «solidão sonora», bodas da palavra com o silêncio. Mas, ao retroceder até ao silêncio, teve que penetrar no interior do ritmo; absorver, em suma, tudo o que a palavra na sua forma lógica parece ter deixado atrás. Porque somente ao ser, ao mesmo tempo, pensamento, imagem, ritmo e silêncio parece que a palavra pode recuperar a sua inocência perdida, e ser então pura acção, palavra criadora.”

"Porque se escreve". In "A Metáfora do Coração e outros escritos", Maria Zambrano.

“Escrever é defender a solidão em que se está; é uma acção que brota somente de um isolamento afectivo, mas de um isolamento comunicável, em que, exactamente, pela distância de todas as coisas concretas, se torna possível um descobrimento de relações entre elas.
Mas é uma solidão que necessita de ser defendida, que é o mesmo que necessitar de justificação. O escritor defende a sua solidão, mostrando o que nela e unicamente nela, encontra.
Se há um falar -, porquê o escrever? Mas o imediato, o que brota da nossa espontaneidade, é algo pelo qual inteiramente não nos fazemos responsáveis, porque não brota da totalidade íntegra da nossa pessoa; é uma reacção sempre urgente, premente.”

“Escreve-se para reconquistar a derrota sofrida sempre que falámos longamente.
E a vitória somente pode dar-se ali onde se sofreu a derrota, nas mesmas palavras. Estas mesmas palavras terão agora, no escrever, uma função diferente; não estarão ao serviço do momento opressor; já não servirão para nos justificar perante o ataque do momentâneo, mas, partindo do centro do nosso ser em recolhimento, irão defender-nos perante a totalidade dos momentos, perante a totalidade das circunstâncias, perante a vida na sua integridade.
Há no escrever um reter as palavras, como no falar há um soltá-las, um desprender-se delas, que pode ser um ir desprendendo-se elas de nós. Ao escrever-se, retêm-se as palavras, tornam-se de quem as escreve, sujeitas a um ritmo, seladas pelo domínio humano de quem assim as maneja.”

“Toda a vitória humana há-de ser reconciliação, reencontro de uma amizade perdida, reafirmação depois de um desastre em que o homem foi a vítima; vitória em que não poderia existir humilhação do contrário, porque já não seria vitória, isto é, glória para o homem.”

“E assim, o escritor busca a glória, a glória de uma reconciliação com as palavras, tiranas anteriores do seu poder de comunicação. Vitória de um poder de comunicar. Porque não só exerce o escritor um direito exigido pela sua torturante necessidade, mas um poder, capacidade de comunicação, que acrescente a sua humanidade, que leva a humanidade do homem a limites recém-descobertos, a limites da sua qualidade de homem, do ser homem com o inumano, aos quais acode o escritor, vencendo no seu glorioso encontro de reconciliação com as tantas vezes traidoras palavras. Salvar as palavras da sua falsa pompa, da sua vacuidade, endurecendo-as, forjando-as, perduravelmente, é o que é procurado, mesmo sem o saber, por quem deveras escreve.”

“Porque há um escrever falando, o que escreve «como se falasse»; e já este «como se» é para desconfiar, pois a razão de ser algo tem de ser razão de ser isto e somente isto. E o fazer uma coisa «como se» fosse outra, diminui-a e mina todo o seu sentido, e proíbe a sua necessidade.
Escrever vem a ser o contrário de falar; fala-se por necessidade momentânea imediata e, ao falar, fazemo-nos prisioneiros do que pronunciámos, enquanto que no escrever se acha libertação e perdurabilidade – só se encontra libertação quando aportamos a algo permanente. Salvar as pessoas da sua momentaneidade, de seu ser transitório, e conduzi-las em nossa reconciliação rumo ao perdurável, é o ofício de quem escreve.”

“O que se publica é para alguma coisa, para que alguém, um ou muitos, ao sabê-lo, vivam sabendo-o, para que vivam de outro modo depois de o ter sabido; para libertar alguém do cárcere da mentira, ou das névoas do tédio, que é a mentira vital.”

“Nesta solidão sedenta, a verdade ainda oculta aparece, e é ela, ela mesma a que se exige ser tornada evidente. Quem progressivamente a foi vendo, não a conhece se não a escreve, e escreve-a para que os outros a conheçam. É que, com rigor, se ela se mostra a ele, não é a ele, enquanto indivíduo determinado, mas enquanto indivíduo do mesmo género dos que devem conhecê-la; e mostra-se a ele, aproveitando a sua ânsia e solidão, o seu fazer calar a gritaria das paixões. Mas não é a ele que ela se mostra propriamente, pois se o escritor conhece à medida que escreve, e escreve já para comunicar aos outros o segredo achado, a quem em verdade se mostra é a esta comunicação, comunidade espiritual do escritor com o seu público.
E esta comunicação do oculto, que se faz a todos por intermédio do escritor, é a glória, a glória que é a manifestação da verdade escondida até ao presente, que dilatará os instantes transfigurando as vidas. É a gloria que o escritor espera mesmo sem o dizer e que consegue, quando, escutando na sua solidão sedenta com confiança, sabe transcrever fielmente o segredo descoberto. Glória da qual é sujeito recipiendário depois do activo martírio de perseguir, capturar e reter as palavras para as ajustar à verdade. Por esta busca heróica desce a glória sobre a cabeça do escritor, reflecte-se sobre ela. Mas a glória é, em rigor, de todos; manifesta-se na comunidade espiritual do escritor com o seu público e ultrapassa-a.
Comunidade de escritor e público que, contra o que primeiramente se crê, não se forma depois de o público ter lido a obra publicada, mas antes, no próprio acto de o escritor escrever a sua obra. É então, ao tornar-se patente o segredo, que se cria esta comunidade do escritor com o seu público. O público existe antes de a obra ter sido ou não lida, existe desde o começo da obra, coexiste com ela e com o escritor enquanto tal. E somente chegarão a ter público, na realidade, aquelas obras que já o tiveram desde um princípio. E assim o escritor não precisa de fazer para si próprio questão da existência desse público, dado que existe com ele desde que começou a escrever. E isso é a sua glória, que sempre chega respondendo a quem não a buscou nem desejou, embora a manifeste e espere para transformar com ela a multiplicidade do tempo, passado, perdido, por um só instante, único, compacto e eterno.”