domingo, 22 de agosto de 2010

"A metáfora do coração (fragmento)." ("A metáfora do coração e outros escritos." Maria Zambrano, Assírio e Alvim, 2000)

“(…) a Filosofia mais pura desenvolveu-se no espaço traçado por uma metáfora, a da visão e da luz inteligível.”

“(…) E estas metáforas a que nos referimos não são os felizes achados da poesia ou da literatura, mas uma dessas revelações que estão na base de uma cultura, e que a representam. Maneira de apresentação de uma realidade que não pode fazê-lo de modo directo; presença do que não pode exprimir-se directamente, nem alcançar com o inefável, única forma em que certas realidades podem tornar-se visíveis aos torpes olhos humanos.

“[Metáfora] É a função de definir uma realidade inabarcável pela razão, mas propícia a ser captada de outro modo. E é também a sobrevivência de algo anterior ao pensamento, pegada num tempo sagrado, e, portanto, uma forma de continuidade com tempos e mentalidades passadas, coisa tão necessária numa cultura racionalista. E a verdade é que, nos seus momentos de maior esplendor, a Razão nada teve que temer perante estas metáforas a que podemos chamar fundamentais. Ou talvez, ao dizer cultura, tenhamos a imagem de uma unidade entre a mais pura razão e esses outros modos de conhecimento, entre os quais se destaca este das metáforas.”

“A razão é pura manifestação, é a própria comunicação. Pode ficar sem dizer, não por isso será menos comunicável. Um pensamento racional, uma Filosofia esotérica, é pura contradição. A Filosofia logo no seu começo foi a ruptura do Mistério. Assim parece sempre para os que são inclinados a um saber misterioso, saber superficial. E a própria Filosofia adquiriu consciência da sua superficialidade, que não é diferente da sua universalidade e da sua principal virtude: a da transparência. Mas o que primeiro sentimos na vida do coração é a sua condição de escura cavidade, de recinto hermético: Víscera; entranha. O coração é o símbolo e representação máxima de todas as entranhas da vida, a entranha onde todas encontram a sua unidade definitiva e a sua nobreza. […] Este abrir-se é a sua maior nobreza, a acção mais heróica e inesperada de uma entranha que parece de imediato não ser senão vibração, um sentir puramente passivo. Signo de generosidade porque indica que aquilo que primariamente é somente passividade – acusação – se transforma em activo. E é tão passivo que não deixa de o ser ao actuar, é o oferecimento daquilo que não tem outra coisa senão integridade. Suprema acção de algo que, sem deixar de ser interioridade, a oferece num gesto que parece que poderia anulá-la, mas somente a eleva. Oferece-se por ser interioridade e para continuar a sê-lo. E isto (interioridade que se oferece para continuar a ser interioridade, sem a anular) é a definição de intimidade.”

“Somente aquilo que constitutivamente é fechado pode ser a sede de uma intimidade; (…).”

“A profundidade impõe tanto e é tão misteriosa porque é o espaço que sentimos criar-se, pela acção de algo que está a ponto de trair o seu ser para oferecê-lo numa entrega suprema, como é toda a entrega daquilo que não se tem primariamente e se adquire para para entregá-lo a quem somente assim pode ir a quem o chama. O profundo é uma chamada amorosa. Por isso, toda a gruta atrai.”

A música do coração
Por ser o trabalho uma incessante condição de vida, não podem as entranhas chegar à palavra; porque toda a palavra é um corte e delimitação na realidade e somente quem pode separar-se da vida pela sua condição independente e impassível pode alcançá-la. Toda a palavra suspende o tempo e introduz descontinuidade na sua incessante continuidade. Por isso preserva do tempo. Nada de estranho pode ter que a Filosofia, que descobriu o pensamento, chegasse a vê-lo fora do tempo. Na realidade não chegou, mas começou, ao descobrir o pensamento - «noein parmeniano» - numa abstracção do tempo. É a condição do próprio pensamento que em sua forma genérica, a simples palavra, executa uma descontinuidade onde parecia não poder havê-la. Faz saltar a lei do tempo, que marcha igual a si mesmo.
Não assim as entranhas que continuam mergulhadas no tempo sem poder sair dele. E por isso não puderam chegar à palavra; por falta de vagar e independência; por impossibilidade de pôr uma pausa no seu trabalho. O seu domínio é o ritmo, como em toda a maquinaria. A música das máquinas atrai porque é imagem da música do coração. Música, pulsar que representa, nisto, também, o pulsar de tanta entranha surda; que soa por toda a mudez dos restantes que, se não se fizessem ouvir de alguma maneira, ficariam cheios de rancor. Pois o rancor nasce do que não consegue, trabalhando sempre, ser escutado.”