domingo, 13 de março de 2011

O deus que é transparência. António Ramos Rosa ("Nenhum deus me acompanha pelas ruas desertas.")

Ninguém me saúda nas esquinas do papel.
Nenhum deus me acompanha pelas ruas desertas.
Mas nos dedos sinto o rumor de um segredo vegetal.
É como se procurasse alargar a mão dos deuses.
É como arder com a água na brancura ofuscante
da ressaca. E as palavras da casa se levantam
a janela a porta a cama e a cadeira.
São presenças espessas e nítidas no perfil.
Assim se forma um círculo com energia erguida
nas sílabas preenchidas pela coerência do mundo.
Maternas são as sombras em torno de um centro verde
que foi talvez um deus antigo que se esqueceu
e o esquecimento é o seu signo: a transparência.

De "Acordes" (1989). In Antologia Poética (Dom Quixote, 2001).

Um poema interativo

A quem me pedir um poema interativo,
direi que neste exato instante o poema é vida própria, acidente,
mão de um qualquer deus a masturbar o leitor,
colhidos os órgãos na passadeira tensa da leitura.

A seguir, neste antro da moral,
vem o leitor interativo, que encorpa e masturba o poema.

A quem mo pedir,
direi que tudo e nada já estão ditos, e do tudo até ao nada.
Talvez falte cursar o outro caminho, a rua deserta,
desnascer
e renascer no hiato habitando a fuga.
 E é talvez neste talvez que se funde e fode o poema.

Pronto.
O poema está agora a borrifar-se nos olhos interativos do leitor.