domingo, 2 de janeiro de 2011

Escrita Redita. Pedro Tamen (Presença, 1998)

Faz hoje oito dias tinha eu oito anos
e tudo era real como nascer de parto.
Faz hoje oito anos tinha eu oito dias
e tudo era igual como partir de facto.
Ressonhar delido é mais trás que frente
(saragoça do canto, que mais me descobre?),
mas dizer poente tanto vem ao caso
como deitar água na mulher de Lot.
Assestar o dedo num ponto do mapa
e acertar o passo com a viração:
viver tendo ao pé as grutas de nada,
morrer devagar entrando no chão.

*

Toca guitarra aquele
que tem unhas.
E ao tocador de garras
que instrumento darás?

*

Aquele que não ama nem odeia,
por não ferver, azeda como o leite.

Do extermínio. Jaime Rocha (Relógio d´Água, 2003)

19.

Só o silêncio é capaz de ocupar essa visão do espelho.
Um homem está morto dentro de um pássaro
e é o seu corpo que se vê através da luz.
Um anjo sai do chão ao seu encontro,
descreve uma curva sobre a sua roupa
e depois transforma-se numa espiral de fogo.
Faz um único gesto. Tal como o pássaro,
o seu nome está inscrito numa rua da cidade,
mas as letras desapareceram no instante do olhar.

*
24.

Tudo está a ser desenhado por um arquitecto.
Primeiro as casas, depois os homens. E só então
se define o leito de todas as mortes. Os pássaros
removem a palha por entre os tijolos, enquanto
o arquitecto olha para o espelho e revê a cidade
antiga. Como o reflexo acaba nas margens do vidro,
ele constrói para cima em direcção ao sol até que
os prédios ardam e as cinzas transformem o chão
numa cintura de veludo.

American Scientist. António Gregório (Quasi, 2007)

AMERICAN SCIENTIST

Lemos que estava a expandir-se o universo e
imaginámos perplexos a quantidade
de espaço novo a dispor entre todos quando
bem contados nem somos muitos. Ela disse
com certeza calhar-nos-á algum e que era
um luxo quase imoral como tomar banho
de banheira cheia nestes meses de seca
prosseguirmos os dois à beira da fusão.

Numa carta electrónica de resposta à
minha o articulista garantiu que nada
se expande eternamente e no prazo de algumas
gerações estelares há-de o universo
encolher outra vez e que por isso o espaço
que nos aparta é só uma questão de tempo.

*

TRANSUMÂNCIA

Agora vou com os animais que vão
no rasto dos lugares donde a água
vai fugindo e que perseguem a orla
do rareamento do pasto: a fome
é móvel como a comida concorre
andando ao mesmo passo atrás de nós.

Um dia ela abriu o peito e mostrou-me
a aridez que transportava e eu
deslumbrado disse que não tinha ideia
do nosso tempo sedentário a
erosão trabalhando-nos assim
vorazmente.

Não seduzir. António Martinho (Alinhavar, 2003)

AS ÁRVORES

Passado o Inverno,
as folhas regressam às árvores.
Em mim continua o frio
e o vento agudo.

(E nada a mim regressa
e nada tenho nos braços).

Mas abro os braços como ramos
e mantenho-os abertos até não poder mais,
a tentar iludir as folhas
e as aves.

*

O SOL, OS GATOS E OS DONOS DOS GATOS

O Sol,
quando as nuvens são mais vulneráveis,
atravessa-as
e vem aquecer os dorsos dos gatos.

Os gatos,
quando os donos estão mais disponíveis
saltam
e vão aquecer-lhes os colos.

Os donos,
quando estão entediados,
escrevem, preguiçosamente,
sobre os gatos,
sobre o Sol,...