sábado, 19 de março de 2011

Ponto de focagem do oceano. Pia Tafdrup (Quetzal, 2004)

NO ESPELHO

No espelho
o olhar desaparece

às vezes desalojado
no meu próprio corpo

às vezes
angustiado
pela angústia
que rola
para lá e para cá como destroços
na rebentação

raspo com um dedo
o vidro
e oiço o mundo gritar.

*

MIL VEZES NASCIDO

[...]
71.
Se formos para o céu,
pergunta a criança,
o esqueleto também vai,
e todos os ossos que o cão comeu?

[...]
97.
Não procurem a caixa negra da poesia,
não tem respostas gravadas,
está cheia de perguntas e perguntas dos sonhos
ou de um silêncio onde é penoso entrar.

*

DEZ INVOCAÇÕES

[...]
Deus, meu Deus
estou deitado num banho de ácido
à espera de melhores tempos

[...]
Deus, meu Deus
sou um corpo
que a linguagem toca

"O valor da fábula"

"Esta é daquelas ideias que nada tinha de perigoso quando foi engendrada, mas que descambou num assunto imprevisivelmente demasiado polémico. À semelhança do que se tem feito com outras figuras históricas - Tutankhamon, Cristóvão Colombo, entre outros -, pretendia-se não só dignificar o túmulo do nosso primeiro rei, como analisar antropologicamente os seus restos mortais. Fundamentalmente, este estudo permitiria aceder a episódios inéditos da vida do fundador do nosso país. Daria igualmente lugar a uma confrontação sem precedentes com as fontes históricas e permitiria dar «uma cara» a um dos grandes mitos da nossa história. Um estudo não invasivo, antes pelo contrário, que permitiria limpar os restos ósseos do rei; uma análise segura, pois não deveria ser necessário sair da Igreja de Santa Cruz para a concretizar; um estudo rápido, que deveria ser realizado em dois dias, para logo colocar as ossadas de novo no túmulo, provocaram variados anseios que o inviabilizaram. [...] Conjecturou-se sobre a possibilidade de os resultados poderem vir a mexer na história de Portugal. [...] Ficámos sem saber se o rei era alto e robusto, se na Batalha de Badajoz fracturou severamente uma perna a ponto de não mais ter montado a cavalo, se a sua morte ocorreu de facto numa idade muito avançada, se padeceu de alguma doença que deixasse marcas nos ossos. Ficámos sem conhecer a cara do rei. Seria tudo isto perigoso?"

"O valor da fábula", Eugénia Cunha in Ideias Perigosas para Portugal (coord. João Caraça e Gustavo Cardoso, Tinta da China, 2010).