quinta-feira, 5 de agosto de 2010

As palavras transferidas. IV - O complexo do mito

Entre a matéria e o mito, as palavras transferidas:
matéria, raso,
mito, experiência.
Tudo o que é de relação potencia ou comporta o mito.
As notícias ensinam os dois conceitos de tragédia:
fruição, inquietação,
com que produzimos e reproduzimos valores –
as propriedades míticas à hora certa:
uma cama suspensa foi avistada esta tarde
ao largo das Berlengas, quando
o tripulante sodomizava quatro gaivotas
que, agradecidas, o ajudaram a voar no lençol.
Boa noite, estas foram as notícias,
refogue-as com as outras surpresas e expectativas
no seu caldo habitual
pois não lhe será dado outro tacho.
E assim se cozinha e se serve uma mixórdia de mitos
consubstanciados
a barrar a matéria
para que nos voltemos sempre a ver de novo amanhã.

As palavras transferidas. II - O mito do eu

Entre o rosto e a mão, as palavras transferidas:
rosto, mão,
desolação e desejo.
De alguma forma (e se isto é forma),
todas as substâncias podem ser unidades míticas.
Despimos a forma
e o nu, o integral, é a sua abstração
complacente.
A desolação tem a forma do meu rosto
e o desejo tem a forma da tua mão.
Desolação, desejo,
rosto, mão,
a cama suspensa
por estas quatro figuras peregrinas
que procuro conhecer enquanto me transportam.
As palavras transferidas qualificam-nas:
despidas, podem agora ser deuses
num processo ilusório ad eternum
a fundir verdades complacentes,
ilusões, abstraídas na angústia,
no desvendamento de mim,
coberto pela forma da tua ausência.