sábado, 13 de agosto de 2011

Jogos de guerra

Ainda há índios e pistoleiros no quintal
da criança cerrada que destruía canteiros
cavando trincheiras, plantava flechas,
semeava granadas com seixos e pinhas e latas e
lenha na mola dos braços.

Vergou couves capturando inimigos!
Sinais de fumo na fogueira do lixo!
Valeu tudo no quintal - perdeu dos dois lados:
não faças a guerra sozinho porque alguém tem de morrer.

Mas saltou o ribeiro heroicamente, quantas vezes
atirou aos eucaliptos e dispersou entre as canas -
havia que apanhá-lo ou fugir de si.

Explorava a fantasia e fugia, assustado
aprendeu que o medo paralisa quem se faz perseguir
e o jogo era esse: acreditar para ter medo,
no tempo em que as guerras ainda paravam para almoço,
que o comer está na mesa e não é de esperas.

Ainda há índios e pistoleiros no quintal
e hoje sabe tanto sobre índios e pistoleiros como dantes:
que é ele só a vingar-
-se numa guerra automática
que agora não pára
nem para comer.

Quando disseram que a infância era o cerco de toda a existência,
o cerco chamou de solidão à infância,
a existência chamou de laboratório ao cerco
e a infância chamou de evidência à existência.

Quando disseram que a solidão era o laboratório de toda a evidência,
a evidência chamou de isolamento dos corpos à solidão,
a solidão chamou de treva ao laboratório
e o laboratório chamou de pretexto à evidência.

Quando disseram que o isolamento dos corpos é a treva de todo o pretexto,
o isolamento dos corpos chamou de desculpa ao pretexto,
o pretexto chamou de combustível à treva
e a treva chamou de silêncio ao isolamento dos corpos.

Quando disseram que o silêncio é o combustível de toda a desculpa,
o silêncio - claro - não chamou nada a ninguém,
o combustível consumiu-se
e a desculpa cumpriu-se igualmente no fim de todos os insultos:
- Desculpem - é que ainda há índios e pistoleiros no quintal,
o medo para picar.

A casa

sei dum pinheiro que pinta
de sombra a casa de cal
não lhe fica cara a tinta
rouba a do sol que há no vale

sei que num vale um pinheiro
chamou-se noite de dia
curvou o seu corpo inteiro
sobre a cal da moradia

sei que de cal uma casa
toldou-se-lhe o céu sem dó
uma sombra cai e arrasa-a
de tão negra, fica só

sei dum vale muito gelado
onde nem a água corre
e fria, no rio parado
veste-se de terra e morre

sei duma casa sozinha
num vale onde vai ninguém
foi-se a cal que a casa tinha
sumiu-se a casa também

Stig Dagerman e a solidão

"Estamos sozinhos, lançados no espaço como uma bóia no mar, expostos como um alvo às setas, já não podemos escapar à nossa sorte e tudo pode acontecer. É de esperar que águias ou falcões desçam das estrelas e se precipitem em fúria sobre nós uma vez que somos o único objecto macio que existe no mundo, o único objecto no qual poderá cravar-se um bico ou penetrar uma garra, é de esperar também que meteoritos ou outra coisa qualquer nos dilacerem o peito nu e virado para o infinito, mas a única coisa que acontece é o espaço começar a cantar, a cantar de solidão. «A única coisa»... não, não se trata de um pormenor insignificante, mas de um facto terrível.
Um pouco de música, pensamos, podíamos realmente suportar um pouco de música: mas não, não é verdade: não podemos suportar a música, somos apenas forçados a suportá-la. «O espaço», esse conceito ridículo com o qual as pessoas se atrevem a brincar quando percorrem pântanos e florestas, parques e instalações frigoríficas, ou quando estão sentadas numa cadeira de balouço e vêem o céu por cima das sebes de lilases, o espaço, esse pequeno lago onde idílicos batéis de nuvens deslizam sob o impulso do vento, o espaço tal como nos surge, quando nunca saímos ainda do buraquinho onde nascemos, onde crescemos, onde maltratámos e fomos maltratados e onde dentro de pouco tempo morreremos, esse espaço não passa de mentira para quem viveu a infinita solidão do espaço, acorrentado a um campo metálico cintilante, sozinho na imensidão mais árida de todos os desertos, e debruçamo-nos na esperança de descobrirmos água, de vermos qualquer coisa de sólido em vez deste vazio pavoroso neste espaço cuja extensão atroz nunca ousámos imaginar enquanto vivíamos no nosso buraco, porque é como um poço sem fundo; debruçamo-nos cada vez mais, a tal ponto que acabamos por cair, e uma vez caídos, continuamos a cair toda a vida sem termos outra coisa para viver além dessa queda sem fim, até ao dia em que morremos em plena queda sem jamais chegarmos a atingir fundo algum, porque somos aniquilados durante a própria queda e devorados pelo vazio depois de termos desesperadamente tentado dar-lhe sentido esforçando-nos por chegar ao fundo.
E todavia, não captamos a desmesura deste espaço nem ao cair, nem ao ficarmos amarrados a ele, nem quando o sentimos pesar no peito, não, é só quando o espaço começa a cantar que descobrimos tudo o que nunca tínhamos conseguido supor, e de repente tudo nos surge com uma certeza esmagadora, e esta certeza far-nos-ia rebentar como um balão se desfecho semelhante fosse possível. Mas quando se está assim miseravelmente colado ao íman, nada a fazer: devemos limitar-nos a ouvir, nem sequer podemos mexer as mãos para tapar os ouvidos e, aliás, isso nada mudaria, porque de cada vez que o espaço canta de solidão, transformamo-nos num grande ouvido à escuta, e para o conseguirmos tapar e deixar de ouvir, seria preciso pelo menos um meteorito, um corpo celeste - quem sabe, talvez uma estrela bastasse? E o canto... oh, é um canto tão belo, mas tão atroz, tão mais belo e tão mais terrível do que tudo o resto que se ao menos pudéssemos morrer... mas estamos condenados a continuar assim eternamente, vivos, enquanto o canto se engolfa dentro de nós como a água na turbina, e julgamos que será sempre assim, que o espaço para sempre cantará de solidão e que nós próprios, ouvidos indefesos numa superfície implacavelmente nua, ficaremos a escutar um canto implacavelmente belo, e que a ausência de eco, de alterações atmosféricas e de dores de ouvidos tornam ainda mais implacável.
Mas de uma maneira ou de outra, devemos ter acabado por nos ver livres desta solidão, ou talvez simplesmente adormecido, para acordarmos no nosso buraco e vermos o habitual raiozinho da eternidade a sorrir-nos entre as persianas e o rebordo da cama.
Já não estamos sós, pensamos então, a ingrata aventura terminou, o triste episódio passou - e a vida continua, de dia para dia um pouco menos solitária; mas a verdade é que as coisas não acabaram ainda, estão apenas a começar. Estamos no quarto ou saímos do quarto, tanto faz, encontramos gente ou não vemos ninguém, é indiferente, falamos com a parede ou calamo-nos diante da parede, comemos e bebemos ou só bebemos, escrevemos uma carta ou limitamo-nos a comprar um selo, começamos uma viagem ou ficamo-nos pela compra de um bilhete, saímos e dançamos ou vamos só até à sala de dança sem dançar, fazemos uma coisa ou não a fazemos, descuramos a maior parte dos assuntos ou nada omitimos: nada disso muda seja o que for, é tudo completamente indiferente, porque continuaremos sempre a sentir esse muro de vidro que nos separa dos outros, esse vidro duro que trazemos sempre connosco, através do qual vemos e somos vistos desde que o trouxemos connosco da nossa visita ao espaço. Estamos isolados como doentes e é justo que assim seja, uma vez que estamos mais doentes do que a maioria; também podemos dizer, por conseguinte: estou isolado como um condenado à morte, e é justo que assim seja, mereço mais a morte do que todos os outros.
E eis-nos de novo sós, mas a solidão é muito pior do que da vez anterior, o espaço não canta de solidão, o espaço não canta seja o que for, o espaço chove, neva, venta - mas isso nada nos diz. Estamos sozinhos de uma maneira acanhada, inestética e pois que seja como for não há salvação (admitindo que escapar à solidão seja salvarmo-nos), não é de admirar que ansiemos pelo grande espaço com a sua música diabólica mas sublime, com o seu isolamento implacável mas higiénico, com a sua ausência total de vida, sem dúvida, mas ao mesmo tempo com uma ausência igualmente absoluta de toda a obrigação de buscar contactos, de toda a necessidade de sorrir quando queremos chorar, de acariciar quando queremos arranhar, de procurar amigos quando acabamos justamente de descobrir que o mundo está cheio de inimigos.
Aspiramos aos instantes de completo abandono, aos instantes de solidão brutal e sublime com toda a intensidade da sua esperança e todo o ardor dos seus olhos, partilhamos um segredo perigoso, fomos iniciados no modo de emprego de um veneno temível chamado solidão e, como morfinómanos, dividimos doravante a vida em dois períodos: a embriaguez e a recuperação."

In "Os fogos da noite". A ilha dos condenados, Stig Dagerman, Antígona, 1990.



Stig Dagerman e o desgosto

"Ao fim de algum tempo, o desgosto fecha-se como a flor antes da noite, não se couraça, mas reveste-se de um envólucro novo como uma pétala sob a qual podemos senti-lo pulsar, continua a fazer parte de nós, permanece fresco e vivo e nele podem molhar-se os lábios como na limpidez de uma fonte; só que passa agora a ser possível, até certo ponto pelo menos, escolhermos o instante em que queremos estar com ele. É perigoso, contudo, deixá-lo de lado demasiado tempo, um desgosto recente tem de ser cuidadosamente tratado, é preciso ir buscá-lo de vez em quando como um objecto precioso e poli-lo como um espelho, caso contrário não tardará a cobrir-se de uma membrana espessa, operando-se assim o couraçamento, o que de resto, mais cedo ou mais tarde, é inevitável.
E quando o couraçamento se instaura, eis-nos de certo modo outra vez no ponto de partida, longe do desgosto no espaço e no tempo, mas tornando-se todas as coisas ainda mais desesperantes porque sabemos nessa altura que nada mais temos a esperar. Em vez do desespero surdo e pesado do início, entramos num terrivel período de apatia, de inércia, de expectativa, e vivemos então segundo a perspectiva de que nada mais acontecerá. Tudo se torna indiferente, tudo em redor se crispa e endurece, queremos colher, mas há só morte para colher, queremos ver, mas o olhar esbarra na dureza do objecto, queremos amar, mas descobrimos que não somos capazes porque nós próprios estamos cobertos por uma membrana dura, todos os sentimentos gelaram dentro de nós, estamos gastos e ressequidos e nada, nem sequer a nossa horrível solidão, consegue ao menos fazer-nos tremer.
Claro, também isto não dura eternamente, desde há muito já pequenas correntes laboriosas agem sob a couraça e por baixo do gelo: por fim tudo explode e, pela última vez, reencontramos o desgosto. Mas desta vez não ficamos tolhidos, o corpo não participa já com o mesmo grau de brutalidade, dir-se-ia que os músculos, os vasos sanguíneos e os membros, outrora tensos de desgosto, já não têm forças para intervir. Tudo se passa agora no plano da memória, voltamos incansavelmente ao terreno devastado, remexemos as ruínas calcinadas onde os destroços deformados de uma vida jazem sobrepostos como serpentes por baixo da fuligem e das traves."

De "O desgosto do sol poente". A ilha dos condenados, Stig Dagerman, Antígona, 1990.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Londres, à luz de Bauman

Uma vez que o Estado vai cedendo a sua função de integração a forças do mercado intrinsecamente desreguladoras e privatizadoras, o terreno abandonado passa a poder ser preenchido por “comunidades”, não tanto “imaginadas” como postuladas, que se apoderam da tarefa posta de parte de fornecer garantias colectivas às identidades privatizadas. O pensamento pós-moderno nada em sonhos de verdades e certezas locais que esperam fazer o trabalho civilizador que as grandes verdades e certezas dos Estados-nação, com as suas pretensões ao papel de porta-vozes da universalidade, não conseguiram levar a cabo: assegurar uma tal unidade de pensamento, sentimento, vontade e acção que qualquer tipo de violência gratuita passasse a ser inconcebível. Mas as comunidades postuladas neotribais esvaziarão decerto essa esperança. O neotribalismo é uma má perspectiva para todos os que desejam ver o discurso e o debate substituir as facas e as bombas como armas de afirmação de si.



As novas classes perigosas, por outro lado, são as que se consideram como não aptas para a integração, por isso sendo declaradas inassimiláveis, já que não parece concebível qualquer função que pudessem vir a desempenhar depois de reabilitadas. Não são apenas excedentárias, mas também supérfluas. Deste modo, vêem-se excluídas permanentemente, portanto: e trata-se de um dos poucos casos de permanência que a modernidade líquida não só permite, mas também vivamente fomenta. Este actual tipo de exclusão não é visto como resultado de uma má sorte passageira, mas antes como um destino irrevogável. Mais ainda, a exclusão tende, hoje em dia, a ser um beco sem saída. Quando se queimam os navios, é muito difícil voltar a construí-los. A inexorabilidade da ordem de despejo e as perspectivas pouco animadoras de qualquer tentativa de recorrer da sentença são o que converte os actuais excluídos em classes perigosas.