sábado, 13 de agosto de 2011

Stig Dagerman e o desgosto

"Ao fim de algum tempo, o desgosto fecha-se como a flor antes da noite, não se couraça, mas reveste-se de um envólucro novo como uma pétala sob a qual podemos senti-lo pulsar, continua a fazer parte de nós, permanece fresco e vivo e nele podem molhar-se os lábios como na limpidez de uma fonte; só que passa agora a ser possível, até certo ponto pelo menos, escolhermos o instante em que queremos estar com ele. É perigoso, contudo, deixá-lo de lado demasiado tempo, um desgosto recente tem de ser cuidadosamente tratado, é preciso ir buscá-lo de vez em quando como um objecto precioso e poli-lo como um espelho, caso contrário não tardará a cobrir-se de uma membrana espessa, operando-se assim o couraçamento, o que de resto, mais cedo ou mais tarde, é inevitável.
E quando o couraçamento se instaura, eis-nos de certo modo outra vez no ponto de partida, longe do desgosto no espaço e no tempo, mas tornando-se todas as coisas ainda mais desesperantes porque sabemos nessa altura que nada mais temos a esperar. Em vez do desespero surdo e pesado do início, entramos num terrivel período de apatia, de inércia, de expectativa, e vivemos então segundo a perspectiva de que nada mais acontecerá. Tudo se torna indiferente, tudo em redor se crispa e endurece, queremos colher, mas há só morte para colher, queremos ver, mas o olhar esbarra na dureza do objecto, queremos amar, mas descobrimos que não somos capazes porque nós próprios estamos cobertos por uma membrana dura, todos os sentimentos gelaram dentro de nós, estamos gastos e ressequidos e nada, nem sequer a nossa horrível solidão, consegue ao menos fazer-nos tremer.
Claro, também isto não dura eternamente, desde há muito já pequenas correntes laboriosas agem sob a couraça e por baixo do gelo: por fim tudo explode e, pela última vez, reencontramos o desgosto. Mas desta vez não ficamos tolhidos, o corpo não participa já com o mesmo grau de brutalidade, dir-se-ia que os músculos, os vasos sanguíneos e os membros, outrora tensos de desgosto, já não têm forças para intervir. Tudo se passa agora no plano da memória, voltamos incansavelmente ao terreno devastado, remexemos as ruínas calcinadas onde os destroços deformados de uma vida jazem sobrepostos como serpentes por baixo da fuligem e das traves."

De "O desgosto do sol poente". A ilha dos condenados, Stig Dagerman, Antígona, 1990.

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