domingo, 26 de setembro de 2010

"Mística e Poesia". In "A Metáfora do Coração e outros escritos" (María Zambrano, Assírio e Alvim).

“Por natureza entendemos a maneira de ser de uma coisa que o é por si mesma, isto é, que o seu ser não está feito pelas mãos do homem. E a natureza do homem – a razão – é algo que o homem não acaba de ter, mas que tem de retomar, de reconquistar.
Esta reconquista começa com a separação do meio estranho em que caiu, começa com a catharsis das paixões, produtos da sua ligação com o corpo-túmulo. Depois aparecerá o caminho da dialéctica que a razão, já sozinha e recolhida em si mesma, percorre, até à ideia do bem, que é o divino, do qual a alma humana é syngenes, parente.”

“Porque o amor leva consigo uma distância. Amor sem distância não seria amor, porque não teria unidade, objecto. É a sua diferença essencial com o desejo: no desejo não há propriamente objecto, porque o apetecido não está em si mesmo, não se lhe tolera este ensimesmar-se […] O desejo consome o que toca; na posse aniquila-se o desejado, que não tem independência, que não existe fora do desejo. Em amor subsiste sempre o objecto que tem a sua unidade inalcançável. A posse amorosa é um problema metafísico e, como tal, sem solução. Necessita de suportar a morte para se cumprir; atravessar a vida, a multiplicidade do tempo.
O amor, tal como o conhecimento, necessita da morte para o seu cumprimento. O amor pelo qual se propaga a vida… Este é, cremos, o fundamento de toda a mística: que o amor que nasce na carne (todo o amor «primeiro» - primário – é carnal) tem, para gozar-se, de desprender-se da vida, tem também que converter-se; como dizia Platão, era preciso realizar com o conhecimento.
E esta conversão verificou-se pela poesia, na poesia. Na poesia, que soube melhor que a filosofia interpretar a sua própria condenação, pois estava-lhe reservado nutrir-se até da sua própria sentença condenatória. Com mais força que o pensamento soube, até agora, arrancar a sua virtude da sua fraqueza; a sua existência de sua contradição, do seu pecado original.”

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