domingo, 27 de fevereiro de 2011

O médico inverosímil. Ramon Gómez de la Serna (Antígona, 1998)

DEPOIS DO CARNAVAL

Depois do Carnaval tenho muitos doentes que recorrem ao meu consultório incomum. As almas, as vidas e os seres destes doentes ficam perturbados com a mascarada.
É-me muito difícil curar nesses doentes o logro, devolver-lhes a verdade, arrancar-lhes a máscara, tirá-los da obsessão.
«Ficou neste estado desde o baile de máscaras», dizem-me muitas vezes em casa dos pacientes, ainda com a elegância daquela noite nas suas atitudes de enfermos, os homens envergando fraque, as mulheres de vestido posto.
Lembro-me de uma a quem perguntei:
- A si que lhe disseram ao ouvido?
Ficou ruborizada, arroxeada, cor de vinho.
- Não lho direi, não lho posso dizer; nunca o direi a ninguém, nem ao meu confessor.
Obstinei-me. Fui insistindo, dia após dia, porque o humor herpético que nela se declarara desde o dia do baile lhe estava já a infectar o sangue e não havia maneira de o desfazer. Era cada vez mais intensa a borbulhagem que tinha na cara, mais vivos os botões roxos e as veias salientes que a cobriam quase por completo.
Tanto insisti, afiançando-lhe que só tirando-lhe do corpo o que lhe tinham dito ao ouvido se podia curar, que um dia, após ter-me pedido que lhe prometesse, sob palavra de honra, que nunca o diria a ninguém, me transmitiu por fim as palavras afrontosas e de vida interminável que ainda hoje lavram na sua alma um prazer sórdido, uma pestilência singular.

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