segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O mar em "Melincué". María Cecilia Muruaga (Camões e Companhia, 2010)

"O mar, infinito ou não, já não me enfurece. Antes, a contundência dessa imagem incompleta irritava-me um pouco, sobretudo se pensava na teia de conceitos exemplares que a civilização tece para os homens novos. O orgulho, a coragem, o empenho, a constância, a pureza, o mistério, a abundância e demais coisas que a moral me atribui, fazem-me sentir como um aluno à espera da decisão do professor em frente a estas águas enegrecidas pela areia. Dizem que se pode encontrar tudo no mar, que no centro escuro da água existe a imensidão. O meu avô comparava-o a uma grande vagina de onde tudo entra e tudo sai, e eu, que há muito deixei de ser um homem novo, compreendo agora que o ignorado tem para todos uma representação reiterativa, atávica. Os mesmos desenhos, os mesmos símbolos, as mesmas reflexões sobre os símbolos, o mesmo assombro. Sentado em frente ao mar, o cu frio de tanto suportar a areia húmida e dura, os olhos irritados pelo vento, não deixo de perguntar ao que viemos.
[...]
Já não importa, digo para comigo, a imensidão do mar, mas mesmo assim, não compreendo porque é que escolhemos estar à beira de algo a que não vemos o fim. Não tenho de me preocupar com nada, dizem, porque não se passa nada.
[...]
O mar, infinito ou não, não me surpreende. Penso que, como a vida, está repleto de restos em decomposição. Partículas pequenas, transformando-se em outras mais pequenas, e outras, e outras mais, até desaparecer. Tudo se desintegra e molha no mar, tudo se empapa com esse líquido escuro, e se transforma numa areia que depois se transmutará em nada. É fácil imaginar a morte, por isso os suicidas escolhem a água: porque afoga e desfaz."

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