sexta-feira, 6 de setembro de 2019

As palavras transferidas. XVII - Desinteresse e imagem


O apelo ao voto é um apego à foto.
Encostamos ao presidente a cara que nos deixaram - 
o que conta é ter os dentes alinhados como as contas dos partidos e esconder o que falta,
como eles.

O pai natal caiu em desuso, agora há o ministério público,
podemos escrever-lhe todos os dias para alívio e arquivo,
podemos esperá-lo todos os dias na lareira das notícias,
nosso murinho de lamentações.

Somos donos do nosso destino dependendo da herança ou da vigia.

Tudo está bem quando a casa não tem janelas
e o presidente convida a olhar braço e mão
estendidos para a cara que nos sobra.
A exigência indignada dos que ficaram.

sábado, 28 de janeiro de 2017

Timbre. Reinaldo Ferreira

Este é o poema que aparece por aí:

Timbre

EU, Morreu. Só há ideal No plural. Tecidos Como os fios que há nos linhos, Parecidos Entre nós como dois olhos, Somos do tempo de viver aos molhos Para morrer sòzinhos. 
Esta é a versão que conhecia:

Eu, Morreu. Só há ideal No plural. Tecidos Como os fios que há nos linhos, Parecidos Entre nós como dois olhos, Há futuro que viver aos molhos E morrer sozinhos.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

As palavras transferidas. IX - Do espetáculo-vida

Entre jogo e verdade, as palavras transferidas.
No fascínio do jogo a universalidade das metas –
jogo é assim representação plena do mundo,
movimentos irrepetíveis na tômbola dos dias,
o campo iluminado de verdade na noite interminável.
O jogador concebe e reproduz a conceção
em movimento sistémico
na emergência do fim. 
E isto é a arte. 
Deificamos o que é finito, finitude é a essência do jogo, 
a sua maravilhosa perfeição.
O fim do mundo não é o fim do mundo,
daí que o jogo o represente e reproduza submetendo
os dias giratórios e a certeza da noite
aos artifícios do deslumbramento pelo efémero,
à adoração das marcas e da nomeação.
E, enfim, das datas.
Parabéns.

As palavras transferidas. VI - O mito da informação

Entre o ser e a denúncia, as palavras transferidas:
ser é o prenúncio cadente, a perceção das coisas,
simulacro de incêndio, arrepio e urgência
do ato, o movimento que fixa, dissemina e esquece
a ideia inaugural.
Procuramos a origem no horizonte,
na lufa-lufa dos corpos e das braças de água.
Esgravatamos a terra iludidos com sementeiras e plantações
para a colheita da fome.
O gesto das máquinas desenha a origem
na produção da palavra
a vida deflagrada é um incêndio
em forma de simulacro de sentido, construção pelo fogo.
Também a palavra é máquina a transferir-se para o gesto,
a configuração das ideias – as chamas –
num projeto a carvão que denuncia o mundo a partir da narrativa.
E então o mundo é ele todo em combustão o seu anúncio.
Esta é a sua notícia.
Informados disso, da cinza do mundo, seguimos agora
para o nosso entediante intervalo de publicidade.

As palavras transferidas. III - O mito da mãe

Entre a forma e o mito, as palavras transferidas:
a cama suspensa
nos ombros dos deuses
- a substância a caminho da sua narrativa.
Os adjetivos qualificam as coisas
e as coisas qualificam as unidades míticas que as constituem, projetados pelos verbos.
Tudo mais são elos de ligação e redundância.
Somos matéria, conceção do mundo rebuscando entre qualificativos.
Não temos mais nada para nos desvendar.
Vendados seguimos em demanda de nós pelas vias possíveis,
a porta escancarada,
luz, intermitência.
Recuemos.
Intermitência, luz,
escancarada a porta,
pelas vias possíveis seguimos vendados em demanda de nós.
Não temos mais nada para nos desvendar.
Somos matéria, conceção do mundo rebuscando entre qualificativos -
tudo mais são elos de ligação e redundância.
Recuemos sem êxito. Renovemos a noite interminável.
Neste desconsolo genético e abstrato da impossibilidade de ser,
geraremos os filhos,
as unidades míticas da nossa abnegação.

As palavras transferidas. I - O mito do medo

Entre a noite e a mão, as palavras transferidas:
noite, assombro,
suspenso, derradeiro,
a porta escancarada,
luz, intermitência,
o teu afago enquanto durmo:
primeira vez a banhares-me o rosto,
primeira luz, primeira água
a escorrer-me na cara imóvel para que não afastes a concha terna,
tua mão sob o meu rosto iluminado.
E então não acordo mais
para que não grites,
para não teres de ir e a luz não funda
estas quatro figuras peregrinas
levando-me em ombros pesarosos,
suspenso na cama,
pela porta escancarada
as palavras trasladas, sempre derradeiras,
a tua mão infinita guiando-as
escadas abaixo
para a noite interminável, assombro
que a luz restabelece e recarrega todas as manhãs.

Alegações

Primeira sessão. A história não valida o poema.
Se o poema diz partir
ou partir o poema,
não é da história que o poema parte à procura
mas da complacência pela moral do poeta
num ato de perpetuação.
A complacência não valida o poema:
o poema diz que a verdade é partir
porém o poema fixa, não parte
- a verdade não valida o poema.
O poema diz partir – que partir é este?
Não entrevemos se o poema vai ou se quebra.
A linguagem não valida o poema.

O poema valida e intrica
a história, a complacência, a verdade, a linguagem.
Resta saber se o poema se valida por igual
ou se o poema é inválido.

Segunda sessão. A história valida o poema.
Se o poema diz vingar
ou vingar o poema,
é a história que o poema pretende vingar
na complacência pela moral do poeta
num ato de perpetuação.
A complacência valida o poema:
o poema diz que a verdade é vingar
e logo o poema vinga
- a verdade valida o poema.
O poema diz vingar – que vingar é este?
Entrevemos que o poema quanto desforra, tanto medra.
A linguagem valida o poema.

A história, a complacência, a verdade, a linguagem
validam e intricam o poema.
Resta saber se o poema as valida por igual
ou se todas são inválidas.

Vai, Ucrânia

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Epitáfio


"Somos o que escolhemos ser."
(Bazófia)

"Somos apenas cúmplices da nossa inabilidade
e dos ornamentos com que a revestimos
para parecer que somos e ser o que parecemos" 
(António Ramos Rosa, Chamo pátria de profundas veias)

Não abandono o meu país. E no entanto não o oiço.
A audição é o sentido da redundância.

Não abandono o meu país, disse do outro lado da fronteira.
Por isso exorto a sair dele, claro que num certo contexto,
o mesmo em que disse não abandono o meu país sem saber onde estava.

Não abandono o meu país, disse o atlântida
talhando a lápide num restaurante tibetano à espera de melhores dias.

Não abandono o meu país, implorou o surdo
para que mais alto lhe dissessem onde fica.
Se ouviu ou não, é redundante.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Mnemónica

Menantes, menantes.
Menantes menando Mena meneando amena a mona.
Se a menam não a penam,
apenas menam.
Quando acenam, Mena mune as mamas
e une-se em manada às suas manas
esquisitas como a merda que os menantes depois escrevem
sobre Gauguin, idas à praia, relva e escalracho.
Não é assim que se mata um macho.